“AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA” – Pandora, a caixa
Dificilmente alguém diria que “Avatar”, de 2019, não seja um filme esplendoroso do ponto de vista estético. A superprodução está entre as maiores bilheterias de todos os tempos não apenas por alavancar e explorar com grande qualidade a tecnologia 3D, mas também por efeitos visuais à frente de seu tempo. Seu defeito, todavia, está na fragilidade de um roteiro previsível e pueril no desenvolvimento da ideia governante que abraça. Tanto nas qualidades quanto nos defeitos, AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA é uma continuação que, contrariando as probabilidades, supera o antecessor.
Passados alguns anos desde que enfrentou o Povo do Céu como Na’vi, Jake Sully constituiu família com Neytiri e vive feliz e em paz com o clã Omaticaya. Quando inimigos conhecidos retornam, a guerra contra os humanos é iminente, sendo necessária a ajuda de novos aliados – os Na’vi do clã Metkayina.
Não é difícil se apaixonar por Pandora tal qual ocorreu com Jake. O visual de “O caminho da água” consegue ser ainda mais fantástico quanto o do primeiro filme, explorando, como o subtítulo indica, uma biodiversidade diferente da obra de 2009. Os animais não se limitam mais a invertebrados, aves e répteis, aparecendo agora anfíbios e animais marinhos simplesmente incríveis. Um deles, o tulkun conhecido como Payakan, faz parte das melhores cenas do longa, que transmitem uma sensação de maravilhamento que ultrapassa o que o diretor James Cameron havia feito no filme anterior. Naquela obra, impressiona a imaginação de Cameron para a criação de um universo próprio, representado pela mencionada biodiversidade, mas também por um povo com sua cultura e seus costumes próprios. Na continuação, o cineasta consegue ir além na medida em que imprime sentimento na interação entre os Na’vi e os animais de Pandora (a cena em que Payakan é filmado na contraluz embaixo da água com o filho de Jake é belíssima).
Para ter alguma originalidade, não bastava a Cameron mostrar a mesma Pandora, razão pela qual ele coloca os Sully com o clã Metkayina. A vantagem é que isso não apenas mostra o que não apareceu antes, ampliando o universo criado, mas também facilita a identificação do público com a família de Jake (que também sabe pouquíssimo da região oceânica). O 3D é muito bem empregado (embora o uso de maior profundidade de campo pudesse ser graficamente benéfico) e os efeitos visuais são admiráveis em seu detalhamento (é possível, por exemplo, perceber a textura da pele de um Na’vi, tamanho o naturalismo), sobretudo na diferenciação entre os clãs e seus integrantes (os Metkayina são mais esverdeados e têm características físicas, notadamente as mãos e a cauda mais grossas, que facilitam a natação).
A estória por trás do script é assinada ppor Cameron juntamente com quatro outros profissionais: Rick Jaffa, Amanda Silver, Josh Friedman e Shane Salerno. Geralmente, uma pluralidade de roteiristas é ruim para o resultado final, mas aqui há um aprimoramento (cabe lembrar que, no filme de 2009, Cameron estava só). É verdade que existe um problema de criatividade: o vilão não é exatamente novo (e sua explicação é pouco convincente) e é reiterada a ideia governante da crítica ao modo como a humanidade lida com recursos naturais, principalmente quando pertencentes a povos considerados inferiores. Em alguns aspectos, o segundo filme parece um espelhamento do primeiro. Além disso, a maioria das personagens não consegue uma fração do encanto que Pandora consegue, seja pelo trabalho de atuação (Sam Worthington faz de Jake um protagonista desinteressante em razão da sua evidente limitação como ator, não disfarçada pela captura de movimentos), seja por não haver desenvolvimento de personalidade (é o caso de Neytiri, pois Zoe Saldana é boa atriz). Entretanto, o subtexto aborda um assunto relativamente novo deveras interessante, inclusive quando se trate de choque entre culturas: identidade.
A problematização da identidade já se fazia presente na produção de 2009, mas aqui não se trata de questionar se Jake é ou não um Na’vi, mas de compreender o significado da identificação e o consequente pertencimento. Há pelo menos três personagens que permitem a reflexão. A primeira é Kiri (Sigourney Weaver), cujas misteriosas origens são fonte de aflição, mas encontra nos costumes dos Metkayina um meio de conhecer a si mesma e se conectar com Eywa. Spider (Jack Champion) talvez seja a personagem mais promissora da franquia, dada a sua evidente sensação de pertencimento à raça Na’vi a despeito de não ser reconhecido como tal por todos, circunstância que se torna ainda mais complexa quando interage com Quaritch (Stephen Lang) – este, inclusive, tem uma identidade ambígua. Ainda, a identificação não precisa ficar restrita ao pertencimento dentro do grupo, como é o caso de Lo’ak (Britain Dalton), capaz de entender uma marginalização social que ninguém mais entende.
Há defeitos inegáveis em “Avatar: o caminho da água”, como a duração exagerada (a trama efetivamente começa somente após 45 minutos de filme), as pontas soltas e a prevalência do maniqueísmo (aqui um pouco flexibilizada). Contudo, ao ampliar seu universo (mantendo, assim, o fascínio gráfico) e aprofundar seu subtexto identitário (que vai além da noção de família), é preciso reconhecer que houve melhorias, o que sempre soa improvável em se tratando de uma continuação (afinal, já não há mais a originalidade). Por ironia, Pandora consegue ser, ao menos em alguns de seus elementos, uma caixa de boas surpresas.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.