“AUTODECLARADO” – Pensar as complexidades
Complexidade. Esta palavra pode orientar os propósitos da escrita da crítica de cinema. Isso porque os textos críticos mais complexos e enriquecedores são aqueles que propõe e defendem uma ideia a respeito do filme, ao invés de simplesmente resumir a trama ou enumerar todas as características da linguagem cinematográfica. Nesse sentido, a complexidade também pode se manifestar na análise crítica da narrativa como um todo, pois o fato de uma obra apresentar um tema socialmente relevante através de questões instigantes não garante que suas qualidades como cinema se efetivem se a forma fílmica não acompanhar a força do roteiro. Tal ponto está na essência das reflexões sobre AUTODECLARADO.
O documentário brasileiro discute as fraudes cometidas por brasileiros brancos nos programas de ação afirmativa para ingresso em universidades e concursos públicos. A partir da premissa, o filme aborda outros aspectos importantes para o acesso pleno à educação ou a oportunidades de emprego, como as diferentes perspectivas em torno do direito das pessoas pardas à reivindicação das cotas. Sendo assim, colorismo, racismo, identidade racial, distintas formas de violência e lugares sociais variados fazem parte da reflexão a respeito do Brasil atual.
Na abertura, o diretor Maurício Costa dá indícios de que o conteúdo e a forma poderiam dialogar com resultados expressivos. Como grande parte das controvérsias acerca do cumprimento das cotas raciais envolve as Comissões de Verificação Racial, a narrativa se inicia dramatizando como seriam as atividades dessa instituição. A partir especialmente da performance minimalista de Luciene Guimarães de Faria, é possível observar que a autodeclaração de cada candidato faz parte da definição de quem tem direito às ações afirmativas, mas também existe uma avaliação por parte de pessoas de diferentes origens étnicas para tentar evitar fraudes de pessoas brancas. Embora o filme problematize a autodeclaração e evidencie argumentos pertinentes para defender a existência de uma comissão verificadora, o documentarista demonstra como os procedimentos podem ser problemáticos. Dessa maneira, a dramatização de uma reunião virtual em que um candidato a concurso justifica seu reconhecimento como negro e escuta o parecer de uma banca simboliza tais problemas a partir de uma encenação investigadora e inquisidora.
Ao longo do documentário, a escolha dos entrevistados reforça ainda mais a potência do tema tratado. Estudantes cotistas, membros de comissões verificadoras, sociólogos, ativistas do movimento negro e outras figuras relevantes para o debate em questão abordam por diferentes ângulos a importância de políticas afirmativas, considerando que a população branca foi historicamente privilegiada e o alcance de medidas como as cotas para o enfrentamento de desigualdades sociais. Então, muitos deles partem de exemplos de situações em que sofreram racismo para discorrer sobre outros tópicos relativos ao acesso à educação ou ao trabalho: relatos de fraudes de candidatos brancos que, por exemplo, pintaram a cor da pele, controvérsias quanto às definições fenotípicas da negritude, riscos da elaboração de critérios absolutos e matemáticos nas comissões (medição do tamanho do nariz e dos lábios ou a padronização do tipo de corte de cabelo) e a definição da identidade a partir de fatores relacionais com outras identidades diferentes.
Se a discussão temática se inicia com assuntos cruciais e os entrevistados possuem conhecimento teórico e prático para enriquecê-los, a construção narrativa não acompanha a mesma complexidade. Nos primeiros depoimentos, as falas são entrecortadas por transições tão rápidas que mal se consegue ver um raciocínio mais extenso ser desenvolvido sem interrupções. A montagem também recorre a diversos recursos plásticos para encadear as sequências com o intuito de tornar a narrativa dinâmica, como efeitos de movimentação de uma folha de papel rústico e a animação estilizada de imagens congeladas acompanhada por narrações em voice over. No entanto, o que mais se destaca na forma cinematográfica é a utilização de ilustrações e símbolos para representas os temas abordados, exagerando naqueles mais didáticos que mobilizam imagens óbvias para falar da trajetória das leis de cotas raciais no Brasil. Os melhores (e menos frequentes) usos imagéticos são aqueles que imaginam visualmente os testemunhos.
Existe outro elemento narrativo que pouco se justifica e, por isso, não permite ao conteúdo do documentário se fortalecer ainda mais. Maurício Costa evidencia que as filmagens aconteceram dentro das limitações da pandemia, tendo algumas pessoas aparecido usando máscaras, entrevistas sido realizadas no formato online com indicações claras do tempo da gravação e programas de reunião à distância sido utilizados com registro explícito do layout dessas ferramentas. Por vezes, a integração entre as filmagens presenciais e o uso de registros virtuais saídos de notícias e depoimentos gravados é feito de forma facilitadora para o cineasta, criando um mosaico de opções “clicáveis” que direcionam o filme para mostrar um vídeo no YouTube, um publicação no Twitter ou vídeos no Instagram. Ainda assim, estes recursos parecem desarticulados da proposta temática e sem a capacidade de torná-la mais expressiva (assim como também ocorre com a decisão de mostrar o diretor e o equipamento de filmagem em ação).
Mesmo que os aspectos estilísticos não dialoguem propriamente com os elementos temáticos levantados, Maurício Costa consegue extrair reflexões, comentários, críticas e ponderações instigantes de seus entrevistados. Os debates sociais tomam como premissa original as fraudes de pessoas brancas que tentam preencher indevidamente vagas de cotistas e se desdobram para outros pontos relativos à questão racial na sociedade brasileira. É assim que boa parte dos testemunhos discutem o lugar social dos pardos, tocando em controvérsias espinhosas que poderiam ser evitadas se o filme não abraçasse certas provocações, como as discriminações praticadas tanto por negros quanto por brancos, a percepção de uma identidade social subestimada e os argumentos contrários ao seu direito às cotas. Além disso, esses desdobramentos incluem o colorismo, as gradações da cor da pele, a violência policial sem diferenciações entre negros e pardos, a interseccionalidade entre raça e gênero e as estéticas oriundas dos diferentes tipos e cortes de cabelo.
Passando pela narrativa de “Autodeclarado“, a palavra complexidade pode ser resgatada em múltiplas dimensões. Como levantado anteriormente, a crítica cinematográfica não poderia se limitar a ser um guia de consumo, um resumo da história ou um check list de todos os elementos. E uma obra cinematográfica não se basta completamente se depender apenas de temas fortes e socialmente relevantes. Nesse ponto, o documentário tem sua força por propor perguntas complexas sem precisar, necessariamente, dar respostas, até porque as respostas complexas podem não ser facilmente elaboradas pela arte. Entretanto, temas fortes e socialmente relevantes precisam ter uma forma narrativa complexa porque o cinema se apoia em aspectos audiovisuais como um todo e não somente no que se depreende pelo roteiro. E a complexidade pode estar justamente na questão de refletir sobre uma produção tematicamente instigante com problemas em sua execução.
Um resultado de todos os filmes que já viu.