“AUGÚRIO” – Choques de representação [25 F.Rio]
Um dos eventos históricos entre os séculos XIX e XX que mais deixou uma herança maldita foi o Imperialismo. Além da violência física praticada pelos países imperialistas, a violência simbólica atingiu a África e a Ásia sob os discursos racistas que descreviam a organização social e a cultura local como inferiores e selvagens. As marcas do processo se desdobram até hoje quando a brutalidade e a intolerância marcam a questão dos imigrantes africanos na Europa. Este pano de fundo é relevante para a experiência proposta por AUGÚRIO, que recebeu o prêmio New Voice da Mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes de 2023.
Transcorrido em uma África de fantasia, a produção acompanha o retorno de Koffi para sua terra natal após quinze anos de ausência. Ao lado da futura esposa Alice, ele enfrenta a resistência da própria família com sua presença ali para pagar o seu dote pelo casamento. Assim como o protagonista, outros três personagens são considerados bruxos pela comunidade e, por isso, vistos como ameaças aos costumes locais. Como consequência, encontram formas de se ajudarem contra a subjugação sofrida.
A premissa chama a atenção para um conflito que oferece possibilidades expressivas para o diretor e roteirista Baloji. A escolha mais óbvia seria abordar o reencontro de Koffi com as tradições milenares do Congo pelo viés da reconexão com as raízes, especialmente porque ele estava vivendo há mais de uma década na Bélgica. A saída para esse país europeu evidencia problemáticas mais sensíveis por terem sido os belgas que invadiram, dominaram e exploraram a região. No entanto, a preferência é pelo choque cultural, pelas maneiras como os habitantes e o recém-chegado representam a si mesmos e os demais. Como resultado, o primeiro ato apresenta o isolamento de Koffi e de sua noiva na composição visual do quadro (apartados dos outros personagens na reunião familiar) e no desdobramento da cena em que, enquanto segura um bebê, o nariz do homem começa a sangrar. Nesse contexto, o protagonista é excluído por ser portador de uma “maldição”.
Koffi não é o único que estaria supostamente “amaldiçoado” de acordo com a cultura tradicional. A irmã Tshala e a mãe Mama Mujila sofrem, cada uma à sua maneira, com julgamentos e recriminações. Além dos três familiares, o menino-princesa enfrenta algo semelhante ao estar dentro de um confronto de gangues formadas por jovens na sua faixa etária. Todos possuem seus próprios arcos e conflitos dramáticos, tendo como denominador comum questões mal resolvidas sobre suas origens. O problema passa a ser dar conta das quatro tramas que correm em paralelo e, por vezes, entrecruzam-se, cada uma delas capaz de ocupar toda uma narrativa. Por isso, a busca de Koffi pelo pai que nunca encontra que evolui para uma nova compreensão da mãe, bem como o embate do jovem com a gangue rival que se converte em um comentário social a respeito de suas lacunas familiares se tornam os núcleos mais envolventes.
Como então representar realidades sociais e culturais tão diferentes? Baloji opta por uma encenação fantasiosa que imagina a África como uma fantasmagoria, ou seja, como um continente que faz suas tradições e crenças mais longínquas oscilarem entre a presença e a ausência, entre o real e o imaginário. Trata-se de uma escolha formal que compreende a hiperestilização das formas, das cores, das imagens e dos ritmos como a melhor estratégia estilística para encenar o que a razão lógica não acessa. Tal princípio conforma as sequências em que a amamentação de um bebê faz jorrar sangue pelas águas de um lago, duas crianças são cercadas por uma mulher sombria semelhante à bruxa de “João e Maria” e Mama Mujila atravessa um deserto em meio a vários focos de incêndio. Apesar da força estética, esses momentos são pontuais e não conseguem criar uma unidade coesa que não abre brechas para representações questionáveis da África e da cultura congolesa.
Existem ainda passagens consideráveis em que os costumes locais são retratados sob uma perspectiva colonialista. Nas relações imperialistas do passado e no tema contemporâneo da imigração, percebe-se a influência das ideologias da missão civilizadora e do fardo do homem branco. Em síntese, elas supervalorizam a cultura europeia como centro da civilização que deveria levar o progresso aos outros povos. Mesmo que a ideia fosse trabalhar em um sentido oposto, a narrativa recai na armadilha de colocar o olhar europeizado do protagonista como eixo condutor das representações. A abordagem dada por Baloji para a cultura ancestral africana beira o exotismo através da exaltação do que é extravagante no figurino, nos cenários, na maquiagem e na mise-en-scène. Seria possível imaginar esta leitura sendo feita por Koffi e Alice, influenciados pela visão de mundo europeia com a qual teriam mais contato, mas personagens originários daquela cidade congolesa também expressam uma visão negativa de sua própria terra natal. Não raramente, algumas cenas trazem críticas de congoleses à própria cultura e a reprodução de estereótipos culturais.
Representar elementos culturais de povos tradicionais africanos e a relação entre indivíduos de diferentes formações sociais está na essência de “Augúrio“. Parte desse trabalho mobiliza um potencial interessante em torno do conflito entre as origens familiares/culturais e as alterações vindas com o tempo, tratado de modos específicos em cada arco. Em outras partes, o filme parece um rascunho que ainda não afinou suas potencialidades para lidar com todas as subtramas e com as implicações da representação social, o que contem a força dramática de sua narrativa. Isso faz, por exemplo, a ressignificação da “maldição” de Koffi, Tshala e Mama Mujila ser enfraquecida, mesmo que seja proveniente de uma discussão poderosa sobre violência familiar e estigmatização social.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.