“ATÉ QUE A MÚSICA PARE” – Silêncios e conexões
Existem diferentes tipos de isolamento. Da restrição física em um espaço específico à exclusão de opiniões e perspectivas de vida, enquanto alguns desses processos compõem planos orquestrados contra determinados indivíduos, outros são resultados de objetivos autoimpostos. É nesse limiar, entre o abandono e o exílio optado, que atua ATÉ QUE A MÚSICA PARE, filme que investiga uma série de tensões e continuidades no relacionamento entre dois idosos.
Após seu filho mais velho decidir morar sozinho, Chiara passa a questionar os rumos de sua vida. Casada a mais de cinquenta anos, ela insiste que o marido, Alfredo, pare de trabalhar realizando entregas, tentando encontrar novos propósitos na companhia de um e do outro. Certo dia, ela decide acompanhar o companheiro em uma longa viagem pelas Serras Gaúchas, acompanhados por uma tartaruga de estimação e décadas de pendências não resolvidas.
Dirigido por Cristiane Oliveira, é interessante observar como o filme da continuidade ao projeto de cinema da diretora, que aqui assina o seu terceiro longa-metragem. Atenta aos silêncios e interessada em entrelaçar pequenos absurdos a um certo grau de realismo, ela segue esculpindo contos sobre relações humanas. Suas narrativas costumam ser contidas, não interessadas em solucionar determinada prisma sobre as nossas convivências, mas sim autorizar o reconhecimento de suas complexidades e diferentes formas de manifestação.
Do início gélido, quase mudo, em que as principais trocas se dão pelos olhares, pelos toques que logo se extinguem, à redescoberta de um calor, de uma pulsão que motiva encontros e renovações no diálogo entre duas pessoas, a produção perpassa a observação desse espaço e as influências que o mesmo exerce sobre aqueles que o ocupam.
É o caso da cozinha de pequenas janelas, imune à entrada de luz solar. É o caso da panela fumegante, mas ainda calma, que espelha a estaticidade da personagem de Cibele Tedesco. Ela vaga por essa casa que um dia trouxe pertencimento, e hoje acomoda os lamentos remanescentes de uma vida deixada para trás. O marido interpretado por Hugo Lorensatti encontra resistência justamente em sua fuga, anulando sua estadia em passagens breves nas quais ficam nítidas as suas dificuldades em interagir com a esposa.
Nesse sentido, a própria encenação naturaliza o distanciamento crescente entre os dois, especialmente no intervalo que antecipa a viagem. Os planos evitam em representar as duas figuras em conjunto, se recusando sequer a apresentar a casa por inteiro. Chama a atenção como a primeira cena pensa os focos de luz para introduzir esse ambiente aterrador. Chiara navega por diferentes cômodos escurecidos, abrindo janelas, acendendo lâmpadas e permitindo a câmera, em seu acompanhamento, tentar desvendar aqueles corredores.
A ideia é a de um signo, tal como o casamento em falência, incompleto, jamais concretizado em frente à tela. Talvez por isso, inclusive, que o longa permite se transformar ao deixar essa primeira clausura. Os cenários percorridos passam a mimetizar esses dois personagens. Paisagens revelam a brisa do vento, que interfere em símbolos estacionados, agitam folhas, grãos terrosos e invocam pulsões há muito adormecidas.
São momentos que lembram inclusive o cinema de fluxo, reconhecido pela preservação de uma temporalidade dilatada, que valoriza arestas para além da ação dramática, e potencializam uma comunhão entre personagem e espectador. Se antes a câmera modulava a nossa percepção, agora somos convidados a vagar pelos planos, investigando a transcendência daquela relação que teima, mas anseia, por ressurgir.
Por outro lado, existe uma certa banalidade na forma como são pensadas essas perspectivas. A tentativa de “humanizar” uma grande amplitude de aspectos – do vento aos gramados, por exemplo – acaba flertando com uma certa hipersensibilidade, um extremo de brincar com os sentidos que descarta a verdadeira potência de cada passagem.
De certa forma, entretanto, preserva uma conexão curiosa com os bamboleios do elo do filme, complementado pela presença da tartaruga. Em relação a essa última, chama a atenção, novamente, como a câmera evita um registro clássico. Os planos abertos valorizam menos a própria criatura que a bacia que a reveste, onde se esconde. Mas existe uma segurança da sua presença ali dentro, segura e paciente.
Ainda que pende a alguns extremos, especialmente em como monta certos estímulos ao espectador, “Até que a música pare” propõe uma forma interessante de contrapor opostos e convergências de um relacionamento. Através de ausências e buscas por ela inspiradas, o filme se permite à paciência de uma tartaruga – aqui longe de um sentido pejorativo – para arquitetar a complexidade de uma relação que perdura entre a falência e o renascimento de uma conexão.