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“ASSASSINA” – O desalento do passado que se repete no presente [26 F.RIO]

Uma das obras literárias mais emblemáticas da cultura grega é “The Murderess“, escrita por Alexandros Papadiamantis. Na trama, situada em uma ilha pobre no mar Egeu, uma senhora vive à margem da sociedade, apesar de ajudar as outras mulheres da região com seu conhecimento sobre ervas e partos. A cada nova menina que nasce e tem como destino se submeter a uma realidade opressiva, a senhora sente que precisa agir de alguma forma, inclusive com ações que desafiam nossa compreensão. A história sobre crime e punição em um ambiente sombrio é a fonte original para o filme ASSASSINA.

(© Tanweer Alliances/ Divulgação)

A personagem em questão se chama Hadoula e ela vive em uma ilha remota por volta de 1900. Enquanto vive presa na rejeição da própria mãe, tenta sobreviver à realidade de uma sociedade que oprime as mulheres e as coloca em um lugar inferior. No vilarejo, diversas meninas nascem em um pequeno intervalo de tempo, mas nenhum menino. Por conta disso, Hadoula começa a acreditar que algo deve ser feito.

Em poucos minutos, os espectadores conseguem sentir a carga melancólica e soturna da narrativa. Não é a trama que indica tal sensação, entretanto as escolhas estilísticas da diretora Eva Nathena. O cenário na ilha grega é filmado com uma abordagem que pode, a princípio, ser redundante, já que ressalta constantemente a frieza emocional e o desalento daquela comunidade. Passadas as primeiras impressões, é possível ter outra relação com o vilarejo seco e pedregoso, a fotografia acinzentada e atuação predominantemente austera do elenco. A opressão do ambiente é um elemento essencial para a história, sendo assimilada em cada detalhe das características geográficas, do tom sexo na construção dos personagens e da atmosfera geral de sufocamento de emoções positivas nas cenas.

Não há muitas possibilidades de escapar do sendo de tragédia inevitável, pois qualquer aspecto que descreva o ambiente converge para a mesma sensação angustiante. As reações de cada personagem ao nascimento de mais uma menina evidenciam a percepção de uma oportunidade perdida, de um menino a menos que se tornaria um adulto hábil para trabalhar e comandar o vilarejo. Os homens que deixaram o lugar provocam um peso pela ausência aos que ali continuaram, tendo se mudado de casa ou sido preso. E as cantigas de crianças durante as brincadeiras falam de se livrar de meninas travessas, algo similar ao que também é feito no primeiro “A hora do pesadelo” por misturar inocência e proximidade da morte. Todos os elementos formam o conservadorismo patriarcal da Grécia na passagem do século XIX para o XX, impactante para todos independentemente da idade.

Karyofyllia Karabeti vive a protagonista de acordo com as mesmas características da encenação. Hadoula é sisuda, enérgica, envelhecida pelos cabelos cinzentos desgrenhados e dotada de uma única expressão facial carrancuda. Ela domina as propriedades terapêuticas de ervas, cuida dos afazeres domésticos e atua como uma espécie de parteira ou curandeira para a comunidade, chamada constantemente para ajudar mulheres grávidas ou enfermas. A sisudez e a falta de emoções agradáveis se manifestam na reprovação do olhar após o nascimento de mais meninas, na criação disciplinadora das filhas e da neta, na observação das demais famílias ao redor e na relação com os penhascos íngremes quando se movimenta pelo local. Não há, entretanto, um único tom no trabalho feito pela atriz conforme a narrativa aprofunda uma sensação fúnebre de motivos inicialmente indecifráveis.

O comportamento de Hadoula se transforma a ponto de colocar em prática uma saída radical para a questão de tantas meninas nascidas em pouco tempo. Nas primeiras cenas em que a violência ocorre, Eva Nathena prefere deixar lacunas nos acontecimentos. Eles teriam se dado como as aparências sugeriam? Teriam sido motivados pela mesma visão valorizadora dos homens? Ou poderiam ser explicados de formas diferentes? Enquanto as lacunas duram, o filme assume uma ousadia complexa ao tornar a protagonista distante da empatia do público e colocar as crianças sob uma situação difícil de ser acompanhada. As transformações da personagem envolvem dilemas internos profundos a partir da consciência de crimes, de um chamado supostamente religioso e de desdobramentos de certo determinismo ambiental.

Simultaneamente ao conflito do presente, há outro que vem de reminiscências do passado. Hadoula é assombrada por aparições de sua mãe que, de início, seriam apenas imagens no canto do quadro com um olhar inquisitorial. Em seguida, passam a ser estratégias de flashbacks que iluminam como foi a juventude da protagonista, embora seja um recurso que confunde a linha narrativa mais do que facilita sua assimilação. Na verdade, as aparições da mãe de Hadoula são mais eficientes quando traduzem as relações conflituosas com a filha (resumidas nas frases “Me abrace. Me beije. Você não me ama?” sem qualquer amor). A criação rígida, o casamento arranjado e as complicações para o pagamento do dote exemplificam por que a vida da personagem seria tão infeliz. Então, o passado seria essa assombração insuperável que ainda afetaria o presente.

Por isso, as privações e sofrimentos de Hadoula se conectam com outras violências sofridas por mulheres do vilarejo, como a falta de perspectiva de futuro, a dominação patriarcal e as agressões físicas. Como, então, aceitar que as meninas cresçam em um mundo assim? O questionamento atravessa todas as ações da protagonista, inclusive as mais controversas. No desenrolar do conflito que coloca Hadoula em movimento em busca de sua própria proteção, uma citação do livro que deu origem ao filme mostrada na abertura é ressignificada: o passado deixaria de ser uma prisão se a mente fosse alterada. Nas duas últimas sequências, quando um presente e um passado se enfrentam com resultados trágicos, um futuro é condenado a ser a repetição do que já se passou.

*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).