“AS PONTES DE MADISON” – Não é qualquer romance
Em “Romeu e Julieta”, William Shakespeare criou um romance tão intenso, ainda que juvenil, que se tornou símbolo do amor infindável. AS PONTES DE MADISON é menos trágico e mais palpável (ignorando, evidentemente, a diferença cronológica das estórias), porém também consegue simbolizar com beleza ímpar a imensidão do amor.
Tudo começa com Betty e Steve, chamados pelo advogado de sua mãe, Francesca, para a leitura de seu testamento. A partir de um último desejo, eles descobrem cartas nas quais a mãe revela ter vivido um breve romance extraconjugal enquanto eles viajavam com o pai. Com isso, eles passam a enxergar a mãe de outra forma e a refletir sobre os próprios casamentos.
Surpreende que Clint Eastwood, acostumado com papéis de um homem duro, consiga imprimir tamanha delicadeza em Robert. Sem dúvida, o entrosamento com Meryl Streep é peça fundamental: da risada graciosa enquanto ele fala sobre um gorila aos seus corpos nus em frente a uma lareira (quase como uma pintura), tudo tem uma organicidade fenomenal. Robert e Francesca não são duas pessoas que se apaixonam, são duas almas que tardiamente se encontram, colocando em xeque tudo o que representavam até então. Ele, um espírito livre avesso às correntes de um relacionamento; ela, a mulher devota à família que precisou abdicar dos próprios desejos para consolidar o que tem.
Diversamente de Robert, Francesca é inicialmente dominada pelo superego. Não é apenas a dedicação ao lar que demonstra a autocensura, mas a vergonha que ela sente ao observá-lo escondida. Ainda que conclua ser “ridículo” fazer isso, seu id acaba falando mais forte. Tentando equacionar o ego, surge uma necessidade incandescente de autodescoberta, de sentir o próprio corpo nu ao receber uma brisa ou ao encará-lo no espelho. Michael (Victor Slezak) e Carolyn (Annie Corley) podem reprovar o “caso” no início, mas não há como não se convencer que o sentimento entre Robert e Francesca foi um amor puro.
As pontes do título do filme têm maior valor simbólico do que narrativo. Nesse sentido, Eastwood é soberbo na direção (na atuação, o grande destaque é Streep, maravilhosa como de costume). O diretor compreende a tensão sexual do casal principal, destacando sutilmente detalhes que fazem toda a diferença, como uma encostada na perna, os objetos em formato fálico (a cenoura que ele corta, as bebidas que eles bebem direto da garrafa) ou mesmo palavras sugestivas (“você é sádica por natureza?”). Em determinado momento, a própria Francesca admite que tudo sobre ele ganhou contornos eróticos – o que, contudo, não elimina um viés mais tradicional do romance, como um jantar à luz de velas e uma caminhada noturna ao som de grilos. Paulatinamente, ambos descartam os próprios freios morais – ele deixa de usar suspensório, ela passa a usar o cabelo solto.
Não apenas na mise en scène, mas também na estética o filme é formidável. O visual é de uma beleza poética, quase etérea: a picape verde de Robert se funde com o verde do gramado, deixando o casal em evidência; a cobertura da Ponte Roseman, em tom escarlate, é como um invólucro que oculta a união. O figurino, de responsabilidade de Colleen Kelsall, é de uma coerência digna de aplausos. Os filhos de Francesca usam cores foscas, escuras, em tons acinzentados; ela prefere cores claras, discretas, porém na companhia de Robert seu estilo muda: na luz noturna, o vestido de cor creme ganha tonalidade amarelada, com maior brilho; o vestido que ela compra (envergonhada, se justificando perante a vendedora, mas com o ego já disposto a alguma liberdade) tem um visual ousado para os seus padrões (decotado e com braços e parte das costas à mostra); mais ao final, ela adota até a cor vermelha.
Em sua primeira aparição, Francesca ouve “Casta diva”, canção que, tanto no gênero musical quanto na letra em si, é uma tradução fidedigna de seu perfil recatado. Lennie Niehaus, inteligentemente, abandona esse estilo para embalar o filme na voz enérgica de Dinah Washington e na arrepiante calorosidade de Johnny Hartman. As cenas em que Robert e Francesca dançam não seriam as mesmas se não fossem escolhidas músicas tão preciosas.
A cena que ocorre dentro do carro do marido de Francesca é possivelmente a síntese inebriante de um filme incomparável. “Romeu e Julieta” ultrapassa as fronteiras do romance puro para demonstrar (ou estimular a reflexão no sentido de) que lamentáveis circunstâncias periféricas podem obstar a concretização do amor entre duas pessoas. “As pontes de Madison” questiona o limite da moralidade em uma área espinhosa. Não é qualquer romance que apresenta camadas mais profundas que as do “viveram felizes para sempre”.
* Pedro, esta crítica vai para você. Feliz Dia dos Namorados!
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.