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“AS POLACAS” – O “filme que poderia ser” versus o “filme que é”

Para abordar seu tema, a dignidade, AS POLACAS poderia ser um filme, mas acaba sendo outro. O “filme que poderia ser” é norteado pela transcendência e atribui centralidade à Sociedade da Verdade. O “filme que é”, diversamente, é norteado pela imanência e atribui centralidade a uma protagonista cujo arco não poderia ser mais desinteressante.

No início do século XX, muitos judeus fugiram da perseguição e da Primeira Guerra em busca de condições melhores no continente americano. A polonesa Rebeca é uma dessas pessoas, que chega ao Brasil com seu filho para reencontrar o marido e recomeçar suas vidas. Porém, o que ela enfrenta no Rio de Janeiro é muito diferente do que esperava, sobretudo graças ao aparentemente gentil Tzvi.

(© Imagem Filmes / Divulgação)

O roteiro de “As polacas” é escrito por Flávio Araújo e Jaqueline Vargas, com versão final de George Moura. Os roteiristas trabalharam a partir de dois livros, que serviram de livre inspiração. O primeiro é “El infierno prometido: una prostituta de la Zwi Migdal”, de Elsa Drucaroff, que conta a história de como uma judia polonesa é aliciada por um homem que, na década de 1920, a leva a Buenos Aires na condição de esposa, mas faz dela uma prostituta no novo lar. O segundo é “La polaca: inmigracion, rufianes y esclavas a comienzos del siglo XX”, de Myrtha Schalom, que trata de Raquel Liberman, uma das vítimas que, no final dos anos 1920, denunciou a organização criminosa Zwi Migdal, responsável por enganar judias imigrantes para obrigá-las a se prostituir na Argentina.

A protagonista do longa é uma criação fictícia, o que não ocorre, contudo, com a sua base histórica. O diretor João Jardim se esmera no design de produção para elaborar uma caracterização de época bastante convincente. No bordel em que Rebeca passa a trabalhar, prevalecem tons amadeirados; a ausência de cores alegres e a escassez de iluminação, na fotografia, traduzir a atmosfera deprimente vivida pela heroína (porém, quando ela se torna mais agressiva, seu figurino é de tom escarlate). As imagens de arquivo, por outro lado, em nada acrescentam, soando como uma recaída do cineasta para o documentário, gênero no qual sua filmografia se baseia. Também a trilha musical colabora para a construção da época e combinam com a narrativa, como ao tocar “‘O sole mio” e “Habanera” no bordel, e nas músicas cantadas por Rebeca em hebraico. No último caso, contudo, para a ampliação de seu significado intradiegético, seria benéfico que houvesse legendas (mesmo considerando que, para os judeus, a tradução da Torá possa provocar imprecisões, o filme precisa ser pensado para o público em geral).

Ignorando as inverossimilhanças presentes no longa – por exemplo, a tímida preocupação de Rebeca ao perder o filho (como ela poderia ficar mais preocupada com uma desconhecida?) e o domínio perfeito da língua portuguesa ao chegar no Brasil (uma transição muito melhor feita em “Retrato de um certo oriente”) -, existem outros fatores incômodos. Um deles é seu ar novelesco, presente tanto em alguns diálogos (falas como “você é um monstro!”) quanto nas reviravoltas do final; o outro é o próprio tom escolhido por Jardim. Em síntese, a história de Rebeca – uma imigrante que chega ao Brasil com um sonho e se vê sujeita à prostituição imposta por um desconhecido – teria tudo para ser um filme muito pesado, seu arco é um arco de sofrimento, mas o diretor escolhe abrandar substancialmente essa trajetória. Os fatos que ocorrem são típicos de um melodrama, porém o estilo da direção, em termos de gradação, poupa o espectador da nudez e da violência que geralmente seriam esperados do enredo. Às vezes isso funciona, como na cena de Rebeca e Oscar (Erom Cordeiro), em que violência e nudez aparecem em grau módico – parte do crédito deve ser dado a Valentina Herszage, que está ótima no papel principal -, mas não é sempre que há êxito, como na cena de agressões contra Deborah (Dora Freind).

Um dos maiores equívocos de “As polacas” reside no foco exclusivo em uma protagonista cuja empreitada é previsível e até mesmo monótona (ainda que triste, é claro). Com isso, os coadjuvantes não têm relevância e o antagonista, Tzvi, é um vilão absolutamente unidimensional, apesar do esforço de Caco Ciocler no papel. Em sua versão do “filme que poderia ser”, a produção deveria dar espaço para outras mulheres e, principalmente, revelar o que efetivamente fazia a Sociedade da Verdade, uma lacuna assustadoramente incompreensível. Da maneira como o assunto é trabalhado, o discurso de exaltação é completamente esvaziado e a obra deixa ao espectador a tarefa de descobrir suas atividades e sua importância. Na versão do “filme que é”, a Sociedade da Verdade é negligenciada em favor de uma narrativa sem surpresas e em nada memorável.