“AS BOAS MANEIRAS” – Uma fábula de gêneros
Clara, enfermeira solitária da periferia de São Paulo, é contratada pela rica e misteriosa Ana como babá de seu futuro filho. À medida que o tempo passa (e as noites de lua cheia se sucedem), a relação entre as duas mulheres se altera profundamente. A princípio, a sinopse de AS BOAS MANEIRAS não revela os diferentes filmes dentro de um só e os variados estilos que dialogam entre si. E, assim, se torna um deleite acompanhar a apresentação de múltiplas facetas integradas em favor de uma história com muito a dizer.
O filme pode ser dividido em duas metades. Na primeira, vemos a obra construir um estudo de personagens a partir das interações entre Clara e Ana e de suas distintas origens sociais. O roteiro consegue desenvolver gradativamente a amizade entre elas, pontuando de forma sutil elementos de suas personalidades e de seus momentos passados: Ana parece uma mulher fútil da elite paulistana interessada apenas no bem-estar material, mas dá sinais de carência pelos vários tipos de abandono que sofreu (brigada com a família e mal vista pelas amigas); Clara sofre as dificuldades de uma vida sem recursos financeiros e tem um comportamento muito retraído. Apesar das diferenças, as duas se encontram por compartilhar uma aguda solidão, seja por conta da gravidez indesejada, seja por conta da dificuldade em se relacionar (o sorriso de Clara ao observar o telefone escrito num guardanapo de bar por uma mulher desconhecida oferece especulações sobre seus sentimentos). Essa relação ainda dá subsídios para refletirmos sobre o convívio e os limites entre indivíduos de diferentes classes sociais.
A eficiência da primeira metade está associada aos desempenhos das atrizes principais. Marjorie Estiano possui um triplo desafio na composição de sua personagem: alternar entre a vivacidade de sua personalidade e a deterioração de uma gravidez estranha, além de mostrar suas fragilidades emocionais. Isabel Zuaa entrega performances distintas e compatíveis às necessidades de cada um dos segmentos: excessivamente contida, discreta e de poucas palavras no início e um pouco mais expansiva e de sentimentos mais evidentes com o passar do tempo (guardando outro tipo de dor em seu interior). A dedicação física das atrizes é a alma de suas personagens: Ana é uma mulher de grande energia e de muitos movimentos que sofre transformações sombrias e se torna apática; e Clara é uma mulher de poucos movimentos, com os braços sempre colados ao corpo, que vai se permitindo ter mais desenvoltura corporal ao longo dos anos.
Na segunda metade, o filme se transforma. Novos personagens são inseridos e as dinâmicas se alteram. Se antes predominavam o drama social e o estudo de personagens, aqui a narrativa amplia o tom sobrenatural com que flertava anteriormente e o relaciona a outros dois temas: a descoberta de uma identidade (por mais única que seja) e o poder da maternidade. A transição entre as duas abordagens é fluida e orgânica através de pistas apresentadas cuidadosamente, e, quando a segunda parte da produção se inicia, não sentimos mudanças abruptas. Entretanto, essa metade possui méritos e problemas: os efeitos visuais estão na medida certa para transmitir o aspecto fantástico da história (conciliando a inocência e o perigo de certa criatura) e alguns elementos do roteiro são menos convincentes e tornam sua duração levemente excessiva e de ritmo oscilante.
Mesmo tendo características particulares em suas duas partes, o filme se configura como uma fábula graças aos cineastas Juliana Rojas e Marco Dutra. Desde os créditos iniciais, o tom fabulesco é apresentado ao trazer uma moldura com as cores azul e amarelo típica de contos de fadas. Outros elementos ampliam esse tom: a caixinha de música e os quadros na casa de Ana e dois “números” musicais – inseridos de maneira surpreendente, mas com a função dramática de complementar as sequências em questão. À medida que a narrativa se desenvolve, a história é construída sob uma base de tensão e estranhamento que só entendemos por completo quando a primeira reviravolta ocorre. Na primeira metade, os diretores utilizam planos fechados em Ana e Clara e filmam os diálogos sem usar cortes para mostrar quem fala (a câmera parece se interessar muito mais pelas duas melhores amigas do que pelos demais personagens e por quem escuta nos diálogos). Já na segunda, eles recorrem a planos gerais porque a tensão foi deslocada para outros aspectos da narrativa e, assim, é necessário pontuar tais diferenças.
Outros aspectos visuais sob a batuta dos diretores reforçam a fábula que se pretende contar. A trilha sonora combina efeitos sonoros diegéticos (principalmente os ruídos das correntes de ar) com acordes criados por instrumentos de sopro e teclas de piano para causar inquietação. Além do design de produção e da fotografia, que trabalham juntos para criar uma fantasia de terror através da exibição da lua cheia: duas pinturas a óleo na casa de Ana mostram um céu encoberto pela lua cheia e são enquadrados em momentos evocativos do filme e a ambientação dos cenários constantemente banhados por sombras nos coloca dentro da tensão (algo reforçado pela pós produção para ressaltar a lua cheia vista próxima à casa de Ana).
“As boas maneiras” é um exercício de estilo cinematográfico que jamais dispensa a importância das questões que pretende trabalhar. E a integração entre tema e estética traz surpresas bem-vindas ao espectador. Trata-se de um filme que exemplifica bem como o processo de imersão cinematográfica contribui para uma ótima sessão de cinema.
Um resultado de todos os filmes que já viu.