“AS BESTAS” – Um ato magnífico
Há uma inspiração hitchcockiana em AS BESTAS em sua primeira parte. Na segunda, por outro lado, ocorre uma virada na trama que transforma o filme em termos de gênero e estilo, mas sem a mesma eficácia. De maneira poética, essa mudança consolida as contraposições que o compõem.
Antoine e Olga são franceses que vivem em um pequeno vilarejo na região da Galícia, na Espanha. Seu trabalho é reformar casas na região, além de vender os produtos da sua horta. O lar, supostamente idílico, se revela um pesadelo crescente em razão de conflitos com os vizinhos.
Dirigido por Rodrigo Sorogoyen e roteirizado por ele e Isabel Peña, a obra se baseia em uma história real com aptidão para o thriller tanto quanto para o drama. Aparentemente indecisos, os dois escolhem unir os gêneros (com as consequências estilísticas pertinentes, mantendo o naturalismo da direção) a partir de um evento na trama que causa um rompimento quase completo. É verdade que, na segunda parte – a dramática -, existem resquícios de suspense, contudo o que é mais eloquente é sua ideia governante autônoma (leia-se, distinta daquela da primeira parte), sobre a dedicação e a lealdade.
Estruturalmente, a narrativa tem dois atos; o primeiro expõe o contexto e prepara os problemas a serem enfrentados pelas personagens, enquanto o segundo conclui a trama enquanto as personagens sofrem as repercussões desses problemas. No caso de “As bestas”, o segundo ato é catapultado por uma elipse problemática por uma série de razões. Existe não apenas o risco inerente ao rompimento, mas uma redução do impacto do clímax, esvaziando consideravelmente a hora final. Hitchcock era um diretor adepto de rupturas similares, mas tinha a habilidade de manter a intensidade de seus filmes após a quebra. Aqui, a elipse reduz o possível impacto dramático, surge uma personagem de modo demasiado abrupto, os diálogos são ruins (ainda mais grave, mencionando um backstory desconhecido da plateia) e o roteiro parece se perder (em especial na cena em que Olga conversa com a idosa). De positivo, resta a atuação de Marina Foïs, que injeta em Olga um peso dramático que o texto não elabora o suficiente. A hora final não é ruim, apenas muito inferior à primeira.
No primeiro ato, o thriller combina com a trama e revela a inspiração hitchcockiana mencionada. Sorogoyen não alcança o nível do mestre do suspense, mas o clima de hostilidade é bem aproveitado. Quando o filme se inicia, a rixa entre Antoine e seus vizinhos já existe, tendo um motivo ainda desconhecido. É interessante perceber a preocupação em evitar a unidimensionalidade, o que se denota da breve menção de um backstory dos irmãos, da demonstração de que nem todos os vizinhos são inimigos do casal francês e, principalmente, da exposição dos argumentos de Xan (Luis Zahera) e Loren (Diego Anido). A questão não é concordar ou não com seus argumentos, mas reconhecer a sua existência, admitindo que existem pontos de vista, dando mais camadas à história.
É a partir disso que surge o suspense, colocando Antoine diversas vezes encurralado e em situações angustiantes. Denis Ménochet é excelente ao encarnar uma indignação implosiva. De caráter naturalista, a direção movimenta pouco a câmera, é econômica nos cortes e depende majoritariamente dos sons diegéticos. A cena da carona pode causar raiva, mas é apenas o começo de provocações que evoluem para um extremo incontrolável, como a – nada menos que sufocante – cena do bosque. A tensão é asfixiante e cresce na mesma proporção da revolta do público também aumenta. Rapidamente, o espectador está fisgado por uma atmosfera de aflição e inquietude, na qual seu desprezo é reflexo do medo sentido pelo casal francês. Há uma cena no bar, em especial, filmada em plano fechado, sem cortes e quase sem movimentação da câmera, que alcança níveis estratosféricos de tensão.
O título se justifica pela tradição conhecida como “a rapa das bestas”, em que são cortadas as crinas dos animais selvagens com o fim de eliminar parasitas (posteriormente, eles são libertados), que é um costume local. O breve prólogo tem o escopo de, em slow motion e uma música que transmite desconforto, introduzir a ideia de bestialidade. O poder visual serve de gatilho para a associação do ser humano aos demais animais, uma contraposição que é reiterada em outros aspectos: a tranquilidade daquele cenário bucólico (em uma fotografia usando verde e tons terrosos) versus a mencionada tensão do contexto vivido pelo casal; o modo como Antoine encara a região, oposto àquele de Xan; os dois ambientes humanos, de um lado, a casa dos franceses, lar de afeto e de uma vida de labor, e, de outro, o bar, onde prevalecem a bebida, a jogatina e diálogos ásperos. Todos esses elementos estão na íntegra do filme, mas com mais força no primeiro ato. Se acabasse ali, ele seria magnífico.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.