“AS AVENTURAS DE UMA FRANCESA” – Universo de Hong Sang-soo [26 F.RIO]
Um dos diretores queridinhos da cinefilia contemporânea é Hong Sang-soo. Responsável por obras como “A câmera de Claire“, “Na praia à noite sozinha” e “Certo errado, agora antes“, o diretor é conhecido por uma decupagem minimalista, uma sensibilidade muito específica e por tramas simples calcadas em passagens prosaicas do cotidiano. Os espectadores que se iniciam na filmografia do realizador vivenciam uma experiência curiosa de estranhamento inicial e envolvimento gradualmente profundo, como se pode perceber em AS AVENTURAS DE UMA FRANCESA.
A francesa do título em português se chama Iris e se mudou para a Coréia do Sul. Precisando encontrar um emprego que pague suas contas, ela começa a dar aulas de francês com um método heterodoxo baseado nas vivências íntimas dos alunos. Ao longo de algumas horas, a professora interage com uma jovem, um casal de meia idade e se colega de apartamento a partir de suas histórias familiares e de suas relações com a arte.
Diferentemente de um ensino convencional com livros didáticos, Iris trabalha com pequenos blocos de anotações. Após conversar e ouvir os estudantes tocarem piano e violão, a protagonista pergunta sobre o que eles sentiram e escreve as respostas em seu material de trabalho. A dificuldade de responder e o conteúdo das falas são os mesmos, de forma que a repetição se torne um aspecto chamativo. Isso se dá porque os personagens não conseguem compreender as emoções em momentos banais? A jovem e a senhora de meia idade se relacionam em algum nível? Ou a professora diminui as emoções experimentadas condicionando as pessoas a repetirem as mesmas frases em tom pessimista? As dúvidas colocadas pela repetição nas duas sequências não é algo naturalista, desperta a atenção dos espectadores e cria curiosidade sobre quem é Iris e por que foi morar na Coréia do Sul.
Qualquer pergunta que se faça sobre o passado de Iris não encontra resposta ao longo da narrativa, deixando um mistério em torno dela. Nesse sentido, Hong Sang-soo cria um universo particular em seu filme que pode gerar um desconforto inicial no público. Como estabelecer um vínculo emocional com a protagonista da qual pouco se sabe e em situações tão corriqueiras que nem parecem pertencentes a uma trama cinematográfica? O trabalho de composição de Isabelle Huppert é fundamental para imprimir dúvidas sobre a personagem e uma natureza misteriosa sobre seu comportamento. Por um lado, parece se importar com os sentimentos dos alunos por perguntar a respeito, por outro resume cada um deles a uma interpretação negativa para a condição humana e se afasta dos estudantes enquanto tocam instrumentos como se fosse inviável continuar ali. A atriz alterna muito bem entre a suposta preocupação e o aparente descaso, mantendo o mesmo tom de voz amigável e a postura descompromissada.
Iris demonstra maior interesse pelo cigarro que fuma constantemente e pela bebida makgeolli que consome em grandes quantidades diárias. As pessoas que encontra se tornam muito mais uma espécie de curiosidade passageira, quase experimentos para conhecer suas vulnerabilidades e emoções mais profundas. Isabelle Huppert contribui para a sensação de indefinição em torno da professora ao fazê-la parecer uma figura distante daquela realidade, algo sentido no momento em que desaparece rapidamente após se despedir de um casal em um jardim. Em outra cena, comemora de maneira infantil com pulinhos de alegria e expressão jovial quando um acontecimento a agrada. Mais adiante, ela dá sinais de flertar com um homem casado como se fosse uma adolescente entusiasmada com a adrenalina do perigo. Devemos, então, simpatizar ou antipatizar com uma mulher da qual pouco se conhece?
Hong Sang-soo constrói um mundo diegético singular para as relações entre os personagens e para a identidade da protagonista em cada aspecto. As escolhas formais do cineasta já são conhecidas pelos fãs, mas podem suscitar surpresas para quem tem a primeira experiência com seu estilo. As “aulas” são dadas em um espaço filmado com longos planos estáticos, que centralizam as figuras em cena e seguem um ritmo própria para a construção dramática. Quando a câmera se movimenta, a perspectiva muda gradualmente com um translado sutil para os lados e enquadra um novo ângulo para o diálogo. O mesmo princípio forma a decupagem das sequências externas. Aos poucos, essa encenação modifica seus impactos dramáticos e estéticos, sobretudo quando o colega que divide o apartamento com Iris é questionado pela mãe acerca da decisão de morar com uma desconhecida. Manter um plano fixo de tempo esticado e sem tantos cortes para a conversa entre filho e mãe ajuda a desenvolver um senso de empatia com eles, de preocupação com seus anseios e de apreensão sensorial de seus dilemas.
Poderia haver certo distanciamento emocional nos primeiros minutos do filme devido às características da decupagem, porém o efeito contrário se instala ao longo de “As aventuras de uma francesa“. A partir do instante em que se compreende os receios de uma mãe de descobrir o filho tão próximo de uma pessoa desconhecida, o universo criado pelo diretor é redimensionado. Passa a imperar a sensação de que os espectadores são levados a fazer parte daquela ambientação, de partilhar as emoções desfrutadas pelos personagens coadjuvantes e de se envolver com os mínimos gestos que promovem descargas sentimentais consideráveis. Esse filho é encorajado por Iris a prosseguir na sua vida como músico ou manipulado a ser dependente emocionalmente da mulher? Quaisquer que sejam as leituras e os impactos por conta da encenação, a narrativa tem uma autoralidade indiscutível. As múltiplas possibilidades de perceber a protagonista e as escolhas formais são possíveis porque artistas com assinaturas específicas estão presentes, sejam eles o poeta citado frequentemente pelo texto lido em algumas cenas, sejam eles o próprio Hong Sang-soo.
*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.