“ARMAGEDDON TIME” – Autobiografia de um sonhador [46 MICSP]
Mesmo se passando na Nova Iorque de 1980, ARMAGEDDON TIME tem elementos que se enquadram em diversos países ocidentais contemporâneos – o Brasil, inclusive. O longa é um coming of age tocante que não mascara uma realidade, servindo de alerta para demonstrar que, apesar do interregno, os avanços sociais foram tímidos desde então.
Paul é um adolescente que sonha em aproveitar seu talento em desenho e pintura para ser famoso um dia. Sem apoio familiar, seu avô, Aaron, é o único que estimula que o garoto sonhe. Quando faz amizade com um colega, Johnny, sua vida se distancia ainda mais do que os pais planejam para ele.
“Armageddon time” é um filme com elementos autobiográficos do próprio James Gray, diretor e roteirista da película. Um primeiro aspecto que lhe dá vivacidade é a maneira como o cineasta demonstra o descompasso entre o mundo enxergado por Paul e aquele que os pais tentam lhe impor. Em determinado momento, Esther (Anne Hathaway) admite que Aaron é o único capaz de se comunicar com o filho, que realmente costuma parecer avoado em seu universo ainda infantil.
É pela sua infantilidade que Paul demonstra um fácil deslumbramento com o que o cerca, como a condição financeira da sua família e o suposto “poder” que Esther teria em sua escola. Por outro lado, surge no menino uma rebeldia que, por óbvio, é do desagrado dos pais, como na cena em que ele pede comida chinesa e no plano acertado com Johnny. Em comum, os dois compartilham a forma pueril com que encaram o mundo, achando que os sonhos são fáceis de serem alcançados. Essa doçura dos meninos contrasta, de um lado, com o peso que os pais de Paul expressamente depositam em suas costas, e, de outro, com a independência que Johnny precocemente precisa aprender a ter. Nos dois papéis estão, respectivamente, Banks Repeta e Jaylin Webb, ambos ótimos.
Do trio de adultos, Hathaway é a que menos se destaca. Irv, pai de Paul, é vivido por Jeremy Strong, que, apesar do pouco tempo de tela, participa de duas cenas que dependem de um talento como o dele. A primeira é a cena do banheiro de casa, na qual Gray usa movimentos de câmera e montagem acelerada para ampliar a tensão e agigantar a atuação de Strong. A segunda é a que ocorre no carro, em que Irv deixa claro o carinho nutrido por Paul. Entretanto, quem realmente se destaca é Anthony Hopkins, em mais uma interpretação brilhante, a despeito do pouco tempo de tela.
Hopkins vive o avô de Paul, mas sua importância narrativa é compensar as cobranças parentais sentidas pelo menino. Enquanto Esther e Irv se deparam com uma muralha que dificulta o contato com Paul, Aaron representa tanto o avô que afaga o neto por vias materiais e discursivas, quanto o norte moral que o adolescente não enxerga nos pais. Com palavras de baixo calão, justamente para acessar Paul, Aaron o ensina a rejeitar todos os tipos de discriminação, algo que, a bem da verdade, é o oposto do que ele vê em casa.
A despeito de Paul ser o fio condutor narrativo, o subtexto de “Armageddon time” é bastante rico em críticas sociais, com destaque para duas. A primeira se refere ao racismo, um preconceito com o qual o protagonista se depara em casa, mas do qual não compartilha (ao menos na maior parte do tempo) ao fazer amizade com Johnny. De maneira nem sempre sutil (o que não é um problema, já que mais de quarenta anos se passaram e, como dito, pouco mudou), Gray aponta a inexistência de negros na escola particular e um certo estranhamento dos alunos em relação às pessoas negras. A segunda crítica social se refere ao elitismo que se inicia na classe política e reverbera em outros setores sociais, criando um abismo no qual o discurso é claramente indigesto para Paul, como se ele, antes de decidir o próprio futuro, já tivesse o futuro decidido por outrem.
É paradoxal que o american dream buscado pelos bisavós de Paul tenha no horizonte um futuro melhor, ao passo que o garoto se sente sufocado por um imperativo de sucesso e dinheiro. No mundo em que ele quer viver, a arte não é um mero passatempo, mas uma profissão como qualquer outra. Para viver nesse mundo, ele precisa vencer muitos obstáculos, algo que o próprio Gray conseguiu fazer. Não à toa, sua biografia tem várias coincidências com o que há no filme.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.