“ARGENTINA, 1985” – Nunca mais
A ditadura civil-militar argentina durou entre 1976 e 1983. Ao longo desse período, milhares de pessoas foram presas, torturadas, assassinadas e desaparecidas sob o pretexto de as Forças Armadas combaterem a subversão guerrilheira em uma guerra revolucionária. Embora ARGENTINA, 1985 aborde a repressão do regime, o recorte temático é ligeiramente diferente. O interesse do filme é reconstruir o julgamento dos crimes dos comandantes das Forças Armadas de então, um dos marcos centrais do processo de abertura política da Argentina na década de 1980. Esta reconstrução é feita meticulosamente até atingir um clímax emocional significativo, passando por um processo que evidencia a força de um evento histórico para todo um país.
Baseando-se em fatos, a obra se inspira no trabalho do promotor Julio Strassera, do procurador-adjunto Luis Moreno Ocampo e de uma equipe de jovens advogados para processar os militares da ditadura em 1985. O processo conhecido como o Julgamento das Juntas e realizado por um tribunal civil colocou no banco dos réus Jorge Rafael Videla, Orlando Ramón Agosti, Emilio Eduardo Massera, Roberto Eduardo Viola, Omar Graffigna, Lami Dozo, Armando Lambruschini, Leopoldo Galtieri e Jorge Basilio Anaya. O ineditismo de militares não serem julgados por um tribunal das Forças Armadas fez com que os advogados sofressem ameaças e pressões políticas, além de ter mobilizado toda a sociedade.
O protagonismo de Julio Strassera é a primeira escolha do diretor Santiago Mitre para fazer sua narrativa aumentar sua amplitude dramática aos poucos. Se a sequência inicial traz a preocupação de um pai com o namorado da filha a ponto de pedir para o filho caçula segui-los, as cenas subsequentes ajudam a dar uma imagem complexa para o personagem em função de seu trabalho e do contexto nacional. Ele se preocupa com a filha também porque suspeita que o namorado poderia querer espioná-lo, hesita em acreditar que o julgamento dos militares realmente seria feito por um tribunal civil e que seria possível condená-los, teme pela própria família ao receber a incumbência de atuar como promotor do caso (por exemplo, suspeitando de uma bomba que poderia ter sido colocada em seu carro) e desabafa com a esposa sobre os medos de falhar em seu trabalho. Sem dúvida, a atuação de Ricardo Darín fortalece a caracterização de um protagonista relutante e imperfeito, que está longe de ser um paladino irrepreensível da justiça, pois carrega dúvidas, defeitos, aflições e temores em cada pequeno gesto ou mudança de postura do ator.
Mesmo que a tarefa de acusar os réus demonstrando a culpa pelos crimes da repressão seja apenas de Strassera, é curioso perceber que sua família também se manifesta e participa desse enfrentamento do passado independentemente da idade. A esposa Silvia, a filha Verónica e o filho Javier se envolvem na questão da maneira que podem com um engajamento explícito a favor da punição aos militares. Todos eles assistem ao programa televisivo que mostrava o relato de uma vítima da ditadura sobre as torturas e a fala de um ministro do governo Alfonsín sobre a subversão do passado. Em outro momento, Silvia conversa com o marido apoiando-o na dura tarefa de lidar com um julgamento tão importante para os rumos da Argentina e dando confiança para acreditar na validade do evento. Os filhos também agem de modo semelhante à mãe, quando Verónica afirma não sentir medo nem diante das ameaças à família e Jair demonstra interesse pelo trabalho do pai querendo saber sobre as sentenças e sugerindo alterações no texto final da promotoria.
Iniciados os trabalhos, Strassera precisa montar uma equipe que o ajude em tão difícil desafio de levantar provas concretas que pudessem assegurar a condenação dos militares sem quaisquer dúvidas. Ao invés de poder contar com profissionais experientes, ele recebe o auxílio do iniciante procurador-adjunto Luis Ocampo e ambos reúnem um conjunto de estudantes de Direito ou recém-formados. Por um lado, este grupo revela como a imagem pública da acusação teria influência relevante sobre os posicionamentos da sociedade sobre o julgamento, afinal nenhum deles poderia dar brechas que os fizessem ser taxados de comunistas. O melhor exemplo disso é Ocampo, um indivíduo com um histórico familiar ligado às Forças Armadas. Nesse sentido, esta preocupação expõe a escala ampla do processo no país, mobilizando de uma forma ou de outra qualquer cidadão. Por outro lado, a escolha dos jovens advogados remete aos filmes de formação de equipes para alguma missão, inclusive tendo uma montagem que proporciona alguns alívios cômicos no encadeamento das perguntas e respostas durante as “contratações”.
Por sinal, a montagem criada por Andrés P. Estrada contribui para encenar as sequências no tribunal a partir da ideia de que todos testemunham um acontecimento de grandes proporções que afetam toda a sociedade. O modo como a decupagem é feita leva o espectador a transitar por planos que mostram a defesa, a promotoria, os réus, as testemunhas, os juízes, a plateia e as demais pessoas fora do prédio. Além disso, a transição também se dá nas questões apresentadas durante o julgamento: os argumentos relacionados à suposta necessidade de proteção contra as guerrilhas ou ao cometimento de excessos por grupos autônomos das forças repressivas, os depoimentos das vítimas ou de familiares das vítimas sobre as violências sofridas e traumas deixados e as estratégias jurídicas ou discursivas de cada um dos lados em nome da defesa de suas posições. O desenrolar da narrativa igualmente amplia as discussões em torno de Strassera e Ocampo ao mostrar o promotor ser questionado pelo que fazia (ou não fazia) nos tempos da ditadura e o procurador ser ameaçado e intimidado dentro e fora de seu círculo familiar.
À medida que o tempo passa, registrado com eficiência pelo filme através das marcações no calendário ou em letreiros no quadro, os dois principais advogados sofrem intimidações e ameaças encenadas pelo cineasta como se saíssem de um thriller político. As cartas e ligações anônimas direcionadas para a família de Strassera e as perseguições a Ocampo pelas ruas da cidade são filmadas de forma a acentuar a força de um evento histórico para toda a sociedade que o vivencia. Santiago Mitre não se limita a mostrar o crescimento gradual da trama nos impactos que os fatos históricos geram, já que, ao lado, do diretor de fotografia Javier Julia, ele constrói imagens de tipos e texturas diversas. Em geral, o público assiste a uma reconstrução ficcional dos fatos com as imagens cinematográficas de hoje, mas, em momentos pontuais, também contempla registros filmados dentro do estilo visual dos anos 1980 (uma escolha formal semelhante a do filme chileno “No“) e arquivos de época efetivamente captados durante os dias de julgamento. As três modalidades de imagens reafirmam que o impacto do que se vê ultrapassa a ficção cinematográfica e remete à história real ocorrida na Argentina.
O fluxo de cenas que intercalam registros ficcionais e verídicos se revela cada vez mais expressivo conforme o fim do julgamento se aproxima. A experiência de assistir a uma obra ficcional reconhecendo seu valor como documento histórico de fatos do passado recente da Argentina prepara o terreno para o desejado clímax emocional do terceiro ato. A leitura do texto final da promotoria propõe uma narrativa e uma compreensão da história que comove em toda a sua dramaticidade de apontar os males da ditadura, do esquecimento e da impunidade para um país que se pretende democrático e que precisa se amparar na memória e na justiça. A reação que se segue escancara a explosão emocional de uma nação decidida a enfrentar os traumas e os crimes do passado para que nunca mais estes se repetissem. Por mais que o trabalho não tenha terminado no próprio julgamento, como o filme deixa evidente nas últimas cenas, a sociedade argentina seguiu lidando com o tema como um processo complexo que exige enfrentamento constante contra o autoritarismo e a violência. Desse modo, “Argentina, 1985” se amplia como produção cinematográfica para ser um tributo às memórias das vítimas e de seus familiares e um alerta para os demais países latinoamericanos que tiveram suas próprias ditaduras.
Um resultado de todos os filmes que já viu.