“ARANHA” – O passado que não passou
Qualquer filme de temática histórica atravessa pelo menos duas temporalidades: o presente de sua realização e o passado de sua encenação. Como se trata de uma trama que representa e reconstrói uma visão sobre períodos históricos, os realizadores precisam retratar eventos, personagens e cenários reais de certa parte da História. Ao mesmo tempo, como se trata de uma obra inscrita em seu próprio contexto, sua gênese tem relação direta com as questões propostas pela atualidade. Este movimento cronológico norteia ARANHA, que faz o presente da América Latina motivar um retorno aos antecedentes da ditadura civil-militar chilena.
Então, o novo trabalho do diretor Andrés Wood alterna entre flashbacks da década de 1970 no Chile e o tempo presente da narrativa, contemporânea de nossa conjuntura. Em 1971, Inés, Gerardo e Justo pertenciam a um violento grupo nacionalista que pretendia derrubar o governo de Salvador Allende. Em meio aos atentados que praticam, eles se envolvem em um triângulo amoroso até cometerem um crime que os separa. Quarenta anos depois, Gerardo reaparece e acaba preso. O ressurgimento do homem, obcecado por reviver seus projetos autoritários, coloca Inés e justo sob o perigo de terem seu passado revelado.
Mesmo que filmes históricos proporcionem a transição entre diferentes tempos e a narrativa seja coerentemente não linear, Andrés Wood evoca uma contemporaneidade mais expressiva do que o passado histórico. É uma sensação que transparece nas duas sequências iniciais, aquelas de maior força dramática e consistência na decupagem que não encontra paralelo em outras cenas. Inés aparece em um campo de futebol exigindo que todas as crianças joguem apesar das decisões do treinador; já Gerardo surge em um assalto perseguindo um ladrão até um desfecho violento. As duas personagens são apresentadas de formas muito mais complexas do que suas trajetórias poderiam sugerir porque até podem ser vilãos, mas não figuras monstruosas alheias à sociedade e à História. Assim, Mercedes Morán atribuiu uma personalidade dominadora e Marcelo Alonso torna Gerardo uma enigmática ameaça silenciosa, caracterizações que movem posteriormente a diegese. E, principalmente, é uma humanização que não justifica atos brutais nem corrobora memórias maniqueístas sobre a ditadura.
Após situar os conflitos do tempo presente em torno do medo de Inés quanto à reaparição de Gerardo, a narrativa volta aos anos 1970 para buscar a juventude do trio principal. Este período não é estranho a Andrés Wood, considerando seus projetos anteriores “Machuca” e “Violeta foi para o céu” representarem a ditadura chilena ou personagens históricos que a desafiaram. Naquele contexto, Inés, Gerardo e Justo pertenciam ao grupo Pátria e Liberdade, que tinha como símbolo uma aranha (luta contra o imperialismo internacional e o marxismo), e se notabilizava pelos atentados para enfraquece o governo Allende. Logo, os primeiros flashbacks explicam a entrada de Gerardo na organização e fazem referência à eleição democrática de um presidente socialista e às ações dos oposicionistas para sabotar o governo. Empresários boicotaram a economia através do desabastecimento de produtos básicos e grupos radicais, como o que aparece na produção, usavam a violência contra comunistas e trabalhadores com o objetivo de gerar o caos (atacam manifestantes que desenham o rosto de Che Guevara em uma parede e impedem trabalhadores para chegar o emprego).
Porém, a representação do passado fica abaixo da caracterização do presente narrativo. Os acontecimentos iniciados em 1971 e concluídos em 1973, às vésperas do golpe civil-militar, que iniciou a ditadura de Augusto Pinochet, cada vez mais se concentram nas relações íntimas entre Inés, Gerardo e Justo; enquanto isso na atualidade, Gerardo se encontra em um hospital psiquiátrico sendo examinado por médicos que verificam seu estado mental e Inés aciona seus contatos para Gerardo não ser julgado e entregar os antigos parceiros. Em certos momentos, o diretor consegue criar transições eficientes entre os dois núcleos temporais através de uma montagem que encadeia cenas distintas a partir de uma conexão temática (as memórias do primeiro encontro, a retomada da violência ou a concretização de romances). Por outro lado, com o desenrolar da narrativa, o vaivém cronológico perde a ligação temática e se concentra em flashbacks que se distanciam do passado histórico até então representado não mantêm a força dramática do presente.
Inicialmente, os anos 1970 são encenados a partir da combinação entre vida privada e pública, colocando no centro das questões políticas a dinâmica pessoal de Inés, Gerardo e Justo. Nos primeiros flashbacks, há um equilíbrio entre o que é a intimidade entre as três personagens com a entrada de Gerardo no grupo e as características da polarização política no Chile. No decorrer da narrativa, esse equilíbrio se desfaz quando o roteiro se fecha demasiadamente no triângulo amoroso e na insatisfação do jovem Justo de ver sua namorada interessada pelo explosivo jovem Gerardo. Desse modo, os conflitos ideológicos se tornam cada vez mais tímidos e mal aparecem os setores sociais a favor de Allende (apenas um jovem gritando o nome do presidente), as medidas governamentais geradoras de divisão da sociedade (a rápida aparição de uma notícia de jornal sobre a nacionalização do cobre) e a movimentação golpista de setores militares (somente uma linha de diálogo a respeito de Pinochet). O que seria a união de esferas diferentes se torna uma balança pendente para o lado pessoal da trama,
Consequentemente, o filme depende muito das cenas transcorridas no tempo presente e consegue extrair o melhor delas. Por razões distintas, os núcleos de Inés e Gerardo mais velhos potencializam discussões quentes na América Latina atual: a mulher simboliza uma elite econômica que tem as mãos sujas por conta do apoio à violência de uma ditadura e esconde seu passado sob uma imagem de empresária, empreendedora e filantropa; já o homem materializa o recrudescimento de movimentos e organizações de extrema direita ao redor do mundo sob o discurso anticomunista, moralizante, militarizante, preconceituoso e xenófobo. Assim, a narrativa trabalha a ideia de que os regimes autoritários se sustentavam com o apoio e a participação de civis que se mantém na sociedade atual impunes em relação aos crimes cometidos (inclusive, Inés faz parte de um grupo privilegiado que utiliza seu poder econômico e contatos políticos para driblar a justiça); além disso, também expõe o ressurgimento de discursos e práticas autoritárias que se transformam com o tempo sem abrir mão de fortes elementos do passado (Gerardo é o tipo de indivíduo perigoso que consegue disseminar seus projetos autoritários por diferentes espaços).
“Aranha” pertence a um quadro mais amplo de produções cinematográficas latinoamericanas que recuperam o passado ditatorial em virtude de anseios, temores e debates do presente. Assim como o Brasil, a Argentina e o Uruguai, por exemplo, o Chile passou por experiências autoritárias que deixaram marcas profundas em sua sociedade. Por conta disso, um filme histórico com essa temática entrelaça inevitavelmente passado e presente, como se pode observar no atual contexto chileno que, através de manifestações populares, reorganiza uma nova Assembleia Constituinte para escrever uma constituição que substitua aquela vigente desde a ditadura de Pinochet. No entanto, o mais recente trabalho de Andrés Wood aborda com mais inspiração este presente (simbolizado por um desfecho que não entrega soluções fáceis nem um horizonte ingenuamente otimista), que se estende por outros países do continente, do que o passado capaz de nos orientar nas lutas contemporâneas.
Um resultado de todos os filmes que já viu.