“AQUI” – Plano sequência
O plano sequência é uma técnica que constrói a complexidade dramática de uma série de fatos em um mesmo plano sem cortes. Na sua execução, ocorre a passagem de espaços ou de tempos sob uma lógica que busca o realismo do olhar sem cortes dos espectadores. AQUI vai na contramão dos usos mais abundantes da técnica em questão e estabelece como proposta a passagem de séculos pelo ponto de vista estático de um único ambiente sem se preocupar com efeitos realistas.
No transcorrer de milhares de anos, o filme acompanha eventos, indivíduos, famílias e experiências a partir de um único local: a sala de uma casa. Ao longo da história da humanidade, aquele lugar específico nem sempre abrigou uma construção, mas recebeu diversas interações humanas desde seus primórdios. Ao se tornar parte de uma residência, contou com muitos moradores, como o casal Richard e Margareth, que viveu o melhor e o pior de seu relacionamento ali.
Uma questão central da narrativa é o fluxo do tempo. Muitas histórias se passam no mesmo espaço ao longo das eras, por vezes se entrelaçando, por vezes se justapondo sem tantas conexões. Como a estrutura é a de um mosaico com diferentes segmentos, assume as características de uma antologia. E o seu aspecto mais perigoso também está presente: a instabilidade de histórias que são mais ou menos atrativas e mais ou menos dotadas de peso dramático. Os arcos de um casal que depende da venda de uma poltrona reclinável, de peregrinos que lutam pela independência dos EUA, de uma família que orbita em torno da paixão do pai pela aviação e de uma família de pessoas negras que tematizam aspectos contemporâneos do país são inferiores à trama principal da família de Richard e Margareth. Não há debates temáticos ou experiências sensoriais significativas para os outros segmentos, pois a pandemia do coronavírus e o racismo são tratados com pouca importância e resumem personagens a avatares sem vida própria.
Como a maioria dos segmentos carece de uma duração maior para ter uma identidade, a trajetória de Richard e Margareth se sobressai mais a ponto de parecer a única trama contada. Tom Hanks e Robin Wright interpretam o casal Richard e Margareth, tendo o suporte de Paul Bettany e Kelly Reilly para serem os pais do protagonista. Por mais que os acontecimentos em torno desses personagens possam extrair comédia e drama ocasionalmente, estão à mercê de conflitos simplificados ou verbalizados com grande frequência em cena. Seria importante repetir tanto que o tempo passa muito rápido, tentando disfarçar a exposição do tema como se fosse uma piada acerca da personalidade de Richard? Seria expressivo o suficiente o peso das preocupações financeiras contra a realização dos sonhos individuais? Certas leituras podem encontrar uma crítica de Robert Zemeckis ao sonho norte-americano, principalmente devido ao artificialismo da construção estética, que se frustra ao longo da história. Porém, tudo vem acompanhado pela ingenuidade e pela breguice de se apoiar em uma visão conservadora sobre o que são a família, as Forças Armadas, a nação e a meritocracia enquanto repassa alguns eventos da história dos EUA.
Robert Zemeckis pode não lidar tão bem com uma perspectiva contestadora que poderia ser encontrada em algumas passagens do texto. A abordagem dramática e textual não estimulam o desenvolvimento de uma crítica, apesar de esta não ser a única possibilidade de tratamento da narrativa. O cineasta se sai melhor quando expõe a artificialidade de uma obra que se aborda a passagem do tempo, mas pode fazê-lo apenas sob uma perspectiva delimitada que não dê conta de todas as possibilidades. Ao posicionar a câmera em um ângulo fixo para enquadrar um espaço específico, ele faz o enquadramento ficar na altura dos olhos do espectador, ou seja, limitado ao que o equipamento e a audiência podem captar. Além disso, é interessante pensar como a escolha estilística remete ao tempo das artes e das tecnologias, ao contexto das mudanças técnicas e espectatoriais. Por um lado, lembra o palco de um teatro no qual os atores são aqueles que movimentam a encenação, entrando e saindo de cena. Por outro viés, evoca o formato de uma televisão ou até dos catálogos atuais de streaming, já que temos à disposição diversos conteúdos para assistir com grande velocidade.
Então, a abordagem estética da obra é mais interessante do que sua dimensão temática ou dramática em si. Isso acontece, por exemplo, graças à maneira com a qual o espaço cênico é trabalhado. Mesmo que o ponto de vista da câmera e dos espectadores não se modifique, a movimentação dentro do quadro trabalha bem as características espaciais. A profundidade de campo elevada cria escalas diferentes para os eventos, sobrepondo o que está no interior da casa e no jardim no lado externo. Um exemplo é a chegada apressada do carro de bombeiros para socorrer uma mulher durante o parto. Em outros momentos, os elementos que estão dentro ou fora de campo fazem a diferença para a criação de uma piada ou de situações conflituosas. É o que se percebe quando um menino foge de um castigo para retornar a uma brincadeira de festa ou quando uma discussão ocorre com personagens em pontos distantes da residência. Conectando-se à ideia geral do tempo, a cenografia também contribui para marcar a passagem dos anos, transitando dos primórdios do planeta, da vida dos povos originários, da independência dos EUA até o estilo de cada morador em épocas distintas.
De forma paralela, alguns recursos bastante estilizados traduzem visualmente a transição dos períodos de tempos. O principal deles é a inserção de retângulos no quadro que indicam a entrada ou a saída de personagens e acontecimentos de diferentes temporalidades naquele local. À primeira vista, pode ser encarada como uma escolha da montagem para dar conta de algo que a inviabilidade de mudanças de ponto de vista com cortes secos poderia trazer se assim fosse decidido por Robert Zemeckis. Entretanto, é possível ir além e considerar as ligações que a técnica possibilita, como o diálogo entre as épocas. Por exemplo, a coincidência do nascimento de dois bebês em um passado distante e séculos depois na casa; a apresentação de um show dos Beatles transmitido pela televisão como trilha sonora de um casamento anos depois; e o desaparecimento de certos personagens por incidentes casuais do cotidiano ou por tragédias inevitáveis. Tais opções narrativas fundamentam novamente a percepção de que o diretor destaca suas interferências na narrativa sem receios de deixar de lado pretensões realistas.
E o que pode chamar mais atenção do público e até integrar a campanha de marketing é o uso da tecnologia de inteligência artificial. Ele tem sido comentado como uma estratégia de rejuvenescimento e envelhecimento dos personagens, porém muitos se esquecem ou não notam que o recurso também foi utilizado para criar detalhes dos ambientes ou ajustar o princípio geral do plano estático com transições temporais a partir da encenação. A tecnologia é mais uma marca que descreve a ideia de passagem do tempo, servindo para caracterizar a atualidade extrafílmica capaz de possibilitar outra técnica para o cinema. Já a delimitação restrita a uma única perspectiva preenche grande parte de “Aqui” e exemplifica o poder do olhar nos filmes através da movimentação da câmera. É o que se pode perceber da última sequência que, mesmo carregando um tom dramático discutível que remete aos problemas da visão ingênua, brega e conservadora do diretor, pode se desdobrar em impactos interessantes em termos de construção visual do cinema e identificação emocional do público.
Um resultado de todos os filmes que já viu.