“APOCALIPSE NOS TRÓPICOS” – Cinema de exportação [48 MICSP] + entrevista com a diretora Petra Costa
“Apocalipse” é o último livro do Novo Testamento da Bíblia. Escrito pelo apóstolo João durante o século I d. C., seu conteúdo é composto por profecias – revelações transmitidas por Jesus – sobre o fim dos tempos, o triunfo final de Deus e o destino da humanidade. APOCALIPSE NOS TRÓPICOS tenta fazer um paralelo entre o Apocalipse bíblico e a política brasileira entre 2016 e 2023, mas não constrói uma narrativa realmente sólida para defender o argumento.
O filme investiga o controle progressivo das lideranças evangélicas sobre a política brasileira. Através de entrevistas com pastores e políticos, incluindo o presidente Lula e o ex-presidente Bolsonaro, os atores que demonstram ganhar proeminência são os que instrumentalizam a fé para dominar até mesmo as searas não religiosas.
Em “Democracia em vertigem”, a diretora Petra Costa defendeu a ideia de que, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o Brasil caminhava rumo a uma ditadura. Naquele filme, como nos anteriores, a cineasta estabeleceu uma linha-mestra e defendeu o seu ponto de vista a partir das narrativas que construiu. O mesmo êxito não é demonstrado em “Apocalipse nos Trópicos”. Em que pese ao uso de recursos que já são a sua assinatura – sobretudo (1) a pessoalidade (a narração voice over em primeira pessoa na sua própria voz, as elucubrações referentes ao tema abordado impulsionando a narrativa), (2) a matéria-prima comum (imagens de arquivo) e a privilegiada (o acesso a figuras políticas essenciais no período e nos eventos expostos) e (3) as intervenções diminutas (a contestação a Malafaia, o slow motion no discurso da Paulista apontando um detalhe que merece atenção) -, Costa não consegue construir uma narrativa sólida.
Um primeiro problema reside na auto-evidência do material-base, cuja eloquência muitas vezes dispensa as suas observações (é o caso, por exemplo, da imagem das mulheres sorridentes com a bandeira do “clube antifeminista”). Ainda mais grave, o roteiro – coescrito pela cineasta com Alessandra Orofino, David Barker, Nels Bangerter, Tina Baz e Moara Passoni (colaboradora) -, com os capítulos que recebe, traduz uma narrativa que perde o seu foco. A tese da cineasta é muito boa: o Brasil tem passado nos últimos anos por uma crescente teocratização, um processo que vem ocorrendo graças a figuras religiosas, em especial o pastor Silas Malafaia, que se infiltram na política para usar os políticos como fantoches, como ele fez com Jair Bolsonaro quando da iminência da nomeação de um novo ministro para o Supremo Tribunal Federal. Os agentes políticos, de fato, se tornaram reféns da religiosidade, sendo muito simbólico que Lula, ao invés de endereçar uma carta aos banqueiros, o fez aos evangélicos. Sem generalizar na associação ideológica, Costa demonstra que nem todos os pastores estiveram ao lado da extrema-direita (os pastores Paulo Marcelo e Bianca de Oliveira, por exemplo, apoiaram Lula). Porém, há fortes argumentos corroborando a sua tese.
Entretanto, a concatenação desses argumentos é costurada de maneira frágil. Mesmo apresentando o dominionismo, existem lacunas em seu raciocínio, como ao não apresentar nenhum estudioso do tema na seara acadêmica e, principalmente, ao deixar de lado algumas explicações que poderiam robustecer o longa. Para além de saltos históricos sem critério e menções sem aprofundamento algum (“colonialismo”, por exemplo, sai da cartola), “Apocalipse nos Trópicos” não vai às raízes mais profundas do fenômeno estudado e traz referências vagas. Surgem quadros sem mencionar os seus autores (a rigor, sequer o MASP é formalmente apresentado, não sendo exigível de qualquer espectador conhecê-lo) e, o que é mais grave, referências bíblicas sem maiores esclarecimentos (novamente, não se pode exigir que qualquer espectador conheça o livro do “Apocalipse”).
O insight da ambiguidade do termo “apocalipse” pode soar inteligente, mas, no sentido bíblico, não há um paralelo consistente. É claro que não se pode esperar que a trajetória de uma nação seja idêntica à de um texto religioso. Entretanto, ao abraçar esse texto, seria necessário estabelecer conexões muito mais firmes do que as que são feitas pelo roteiro. A falha não está na ideia em si, mas na maneira como ela é desenvolvida, diante de lacunas explicativas, vaivéns históricos, comparações distantes e, por fim, obviedades para o público brasileiro. “Democracia em vertigem” fez sucesso no exterior porque é cinema de exportação; “Apocalipse nos Trópicos” foi elaborado com a mesma mentalidade e deve ter sucesso similar (inclusive por ter Brad Pitt envolvido na produção). Para os estrangeiros, essa maneira “mastigada” e resumida de entregar os fatos exaustivamente mostrados no noticiário brasileiro é suficiente. Para os brasileiros, a exposição (ainda que desabonadora) de personagens (ainda que coadjuvantes) da extrema-direita tem um histórico bastante negativo.
* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Em tempo: também durante a cobertura da Mostra, tivemos a oportunidade de entrevistar brevemente a diretora Petra Costa. Segue abaixo:
Nosso Cinema: Já que você esteve perto de líderes religiosos famosos, você acha que eles realmente sentem aquilo que dizem e pregam? O sentimento parece autêntico?
Petra Costa: Eu acho que eles transmitem muita convicção, acima de tudo. Eles têm muita certeza sobre o que eles falam, e um domínio. O pastor Silas Malafaia [por exemplo] tem um domínio da Bíblia e da Constituição brasileira, ele sabe de cor todos os versículos da Bíblia e sabe de cor todos os artigos da Constituição. E está sempre falando dos dois nas redes. Eu acredito que eles têm a convicção de que o país deve ser presidido, controlado, por aqueles que aderem à visão cristã que eles pregam.
Nosso Cinema: Depois que nós tivemos a nossa “democracia em vertigem” e agora com o “apocalipse”, para você, como diretora, qual o próximo passo? E, na sua opinião, qual o próximo passo para o Brasil?
Petra Costa: Eu acho que o Brasil precisa fazer de tudo para não se tornar uma teocracia e restabelecer a separação entre Igreja e Estado. Isso é o mais fundamental, porque senão o nosso próximo passo será nos tornarmos uma teocracia. E eu, como diretora, vou fazer um filme que é um western, o meu próximo projeto é um western. Ele volta a algumas questões mais políticas, mas em um âmbito mais pessoal.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.