“ANORA” – Moralismo e absurdismo [48 MICSP]
Reunindo a comédia absurdista a um moralismo surpreendente, ANORA decepciona pela obviedade com que sua temática é abordada. Ao invés de adentrar na vida da personagem que dá nome ao filme, a opção é por uma narrativa que ignora o pretérito diegético e foca no que tem de mais superficial.
A jovem Anora trabalha em uma boate no Brooklyn como dançarina erótica. Certo dia, ela dança para Vanya, um rapaz filho de um russo muito rico e poderoso. A partir de então, eles criam uma espécie de conexão e iniciam uma forma de relacionamento. A união feliz, porém, é rechaçada pelos pais de Vanya, que vão para os EUA para afastar os jovens definitivamente.
O diretor e roteirista Sean Baker mantém elementos da sua filmografia que lhe são caros, sejam eles contextuais, sejam imagéticos. O contexto é de um lado dos EUA que os estadunidenses negligenciam (isto é, fingem que não existe); repetindo a seara de “Red Rocket”, esse contexto é o das profissões sexuais. Diversamente de “Projeto Flórida”, em que a crítica social é a força motriz do longa, aqui há uma aproximação em relação ao viés cômico daquele e um afastamento do drama deste, o que acaba reverberando na crítica social idealizada.
Nesse sentido, não há dúvida que é a comédia que prevalece no longa. O humor sempre depende da sensibilidade individual, contudo, de maneira geral, ele é bastante repetitivo e não muito inteligente, a despeito de bons momentos. As virtudes repousam nos instantes em que o absurdismo é abraçado e servem a um propósito mais universal, não apenas à diegese (por exemplo, o cliente nonsense que afirma que a dançarina parece a filha, ou a moça que considera “geriátrico” alguém com quarenta anos). Esses instantes, todavia, são residuais, pois o que prevalece é uma singela comédia de erros, em que os capangas de um possível mafioso têm uma conduta bastante distinta daquela que se espera. O absurdismo se verifica justamente no comportamento dessas personagens, pois sua imbecilidade (mais do que a mera incompetência) é a catapulta do humor.
Chama a atenção o fato de que as personagens secundárias são melhor aproveitadas que a protagonista. Enquanto Toros (Karren Karagulian) é o capanga cerebral (basta ver o poder de persuasão perante Ani), Garnick (Vache Tovmasyan) é o seu verdadeiro oposto, uma contraposição que funciona bem. Ainda melhor é a participação de Igor e Vanya, que têm maior proximidade com a protagonista e, na prática, a ofuscam. Igor (Yura Borisov) destoa completamente dos outros capangas por ser o único capaz de demonstrar sensibilidade (a ponto de, para iniciar um diálogo, perguntar o material de um cachecol) e, principalmente, empatia. Percebe-se que sua aparência musculosa e séria não condiz com seus atos; seu tom de voz baixo e sereno é efetivamente engraçado por fazer parecer que ele está no lugar errado. Quem realmente ganha os holofotes é Vanya/Ivan (Mark Eidelshtein), ora pelo humor textual (como quando diz para Ani que ela parece ter mais idade do que tem), ora (em especial) pela linguagem corporal eloquente. Ivan parece estar sempre sob efeito de estimulantes, sendo capaz de dar piruetas na cama e deslizar no chão da sua mansão da maneira mais enérgica – e infantiloide – possível. Como uma criança mimada que mora no luxo (basta ver a decoração da sala da sua casa), até mesmo seu desempenho sexual é motivo de piada.
Ivan é o nível mais alto de comédia do longa, sendo ele também o epítome do vazio da juventude, tese central da obra. Suas atividades se resumem a festas, videogame, bebida e drogas, expondo constantemente uma futilidade de nível estratosférico. O fato de Ivan não estar pronto para a idade adulta não seria um problema se o filme não partisse dessa premissa generalista, com um discurso moralista criticando a geração Z. Em outras palavras, se isso ficasse reduzido a Vanya, não seria a ideia governante, porém a conclusão de que os Centennials são ocos é claramente o mote do roteiro. Duas hipóteses poderiam contradizer essa interpretação: se Ani fosse diferente e se Ivan fosse elemento isolado nessa ótica. Porém, não é isso que ocorre.
Além de Ivan, Toros verbaliza o moralismo (ele lamenta que, na sua visão, os jovens não respeitem os mais velhos, não tenham objetivos de vida, não queiram trabalhar etc.), não havendo qualquer contraponto a esse olhar. No caso de Ani, a despeito do bom trabalho de Mikey Madison no papel, a protagonista não poderia ser mais unidimensional. Trata-se de uma jovem que, sem privilégios como Ivan, trabalha em uma boate na esperança de magicamente encontrar seu príncipe. É verdade que existe aqui uma subversão ao conto da Cinderela, porém a história clássica funciona porque existe um backstory de sofrimento bastante claro, não presumido ou em flashes (como a casa onde Ani vive). Em “Anora”, pode-se presumir uma vida infeliz, mas não é isso que o filme desenvolve. Na prática, o longa coloca os abastados e os não privilegiados em um denominador comum: quando jovens, são vazios de conteúdo e absolutamente superficiais. É nessa generalização que está o seu maior equívoco.
* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.