“ANHELL69” – Imagens transmorfas
É normal se sentir morto, mesmo vagando por entre os vivos. Esse estado contraditório impõe desafios contra a própria natureza, o questionar daquilo que nos define. Ainda que represente um dilema comum, universal, tais condições sugerem uma superação das próprias leis da física, um extravasamento para além do que se entende por humano. No trânsito por entre essas possíveis definições, ANHELL69 é um fantasma buscando a sua emancipação, transfigurada pela intersecção de imagens de diferentes matrizes.
Dedicado a realizar o seu mais novo filme, um diretor iniciante convoca um teste de elenco com um grupo de jovens. Eles discutem a própria identidade, tratam de questões voltadas à sexualidade, reafirmam quem acreditam ser. A grande revelação vem com Camilo Najar, rapaz gay que o cineasta acredita ser perfeito para o protagonista. Poucos dias depois da decisão, o selecionado perde a vida para a violência das ruas colombianas.
Partindo de arquivos que resgatam a assinatura de um decreto de paz em 2016, a direção de Theo Montoya pensa um universo apenas plausível no esgotamento de suas próprias imagens. Ele questiona a capacidade da juventude em sonhar com um futuro, amaldiçoados pelo legado violento deixado pela Colômbia. A obra que ele cria dentro da obra abstrai essas questões.
Rumo ao desconhecido em um carro funerário, Theo explora esse não lugar pelo projeto de um filme de horror B.
Nesse universo fabulado, pessoas dividem suas vidas com fantasmas, com quem podem conversar, dançar e transar. Ao passar de um eixo ao outro, perseguido pelas tropas de uma perigosa célula governamental, Anhell69 – personagem fictício que Camilo interpretaria – se torna uma espécie de mártir. É uma espécie de transe entre a vida e a morte que advoga pelo teor revolucionário capaz de transcender o próprio corpo.
Nesse trâmite entre duas dimensões – e que nunca são formalmente separadas pelo filme, sempre em encontro -, a montagem brinca com diversos tipos de texturas. Surge um assoalho amontoado por camadas de diferentes tempos, de uma continuidade interna regida não necessariamente pela lógica, mas justamente por sua transcendência.
Os grãos de noticiários antigos mimetizam a dança das boates escurecidas, onde corpos andrógenos se encontram e se desencontram, oscilando em combustão. Gravações antigas relembram a violência difundida pelos militares, deslocadas de sua época para ecoar no presente, onde muitas identidades acabam sendo suprimidas. É na dissolução dessas bases materiais que surge um novo processo de auto definição, como se não houvesse tratamento alternativo para além do jogo entre essas dissociações, flertando igualmente com o dissecar das intersecções entre o corpo e a alma.
Em direção ao nada, o carro funerário habita uma estrada própria. Os fantasmas se espalham por uma sala de cinema, mirando um futuro que pode ainda se reverter no presente. O filme se corrompe para dentro de si mesmo, desafiando o código imposto pelas passagens mais fabulativas, captadas em digital. Encontra orgulho nesse processo de transformação, falando muito menos sobre esse histórico de construções narrativas – ainda que também ambicione um comentário sobre o desmonte dessas hegemonias – do que a respeito dessas existências transformas.
Nesse processo, vale destacar as confissões que Theo compartilha com relação ao próprio projeto. Ele desconhecia as direções exatas que pretendia seguir, tendo seu cerne, inclusive, na falência de sua ideia inicial para um filme de ficção. A interrupção de uma vida ressignifica uma maneira de imortalizá-la, esparsada entre uma representação fantasiosa, os depoimentos em vídeo de Camilo Najar e os vestígios, de outras fontes, de anos de uma luta militante contra a opressão colombiana.
Existe a ideia de uma transexualidade capaz não só de libertar todos os seres errantes, condenados a vagar de um plano a outro, como de danificar a própria linguagem estabelecida ao início. Como se a associação entre os diversos segmentos da produção se justificassem pela pulsão, pelo atrito que impõem uma sobre as outras – e que percorre os corpos, as pistas neons e o estado entre a vida e a morte -, e muito menos por uma narrativa com começo, meio e fim.
Desse modo, “Anhell69” traz uma narrativa híbrida, tanto em texturas, linguagens, quanto em suas personagens e identidades. Se não existe possibilidade de um futuro de acordo com a linearidade do tempo, que se crie uma forma de própria de dialogar com o avanço do mundo!