“AMSTERDAM” – A sabotagem de um potencial criativo
Os filmes históricos tem recebido uma roupagem cada vez mais popular no cinema norte-americano: a mescla entre fatos pouco conhecidos e a ficção. Para além da popularização de figuras através de rostos conceituados, essa abordagem pode trazer interessantes aplicações cinematográficas. É o caso da suspensão da concretude factual, que permite interessantes trámites entre o registro e o autorismo dos cineastas. Não são todos, todavia, que conseguem ir além de inofensivos shows de fogos de artifício, caso do esquecível AMSTERDAM.
Anos após lutar na Primeira Guerra ao lado do melhor amigo, Harold Woodman, o médico Burt Berendsen leva uma vida pacata ajudando veteranos feridos em combate. Tudo se transforma quando a dupla acaba se envolvendo em uma grande conspiração, que parece estar relacionado a um passado que tiveram ao lado de uma misteriosa enfermeira americana.
Dirigido por David O. Russell, diretor que teve a sorte de ser bastante lembrado nos últimos anos de premiação, o filme opta por uma atmosfera cômica e de constante desarmamento dos eventos – verdadeiros em sua “grande maioria”, conforme o letreiro inicial -, em diálogo com uma certa consciência do absurdo dos eventos que serão relatados ali.
Apesar desse tom bem definido se manter durante todo o trajeto – e que nós minutos iniciais bem funciona na construção acelerada dos acontecimentos diretos que mapeiam o mistério a ser desvendado -, não demora muito para que a obra revele um descompasso entre as suas múltiplas decisões.
A divisão em planos que opta por uma câmera majoritariamente em steadycam, por exemplo, pouco atenta para as minúcias da direção de arte, e que bem poderia complementar a artificialização assumida que tenta conversar com o teor farsesco ali esmiuçado. Se por um lado isso permite o predomínio de planos que mapeam a movimentação das personagens e lhe oferecem destaque, ao mesmo tempo a obra também não convence através de suas atuações.
Os voice-overs do protagonista de Christian Bale até esboçam uma presença carismática, mas que se nos convocam a torcer por ele também em nada valorizam os seus conflitos mais internos. O mesmo acomete John David Washington e Margot Robbie, que brilham apenas no conjunto uns com os outros e na promessa de um potencial – e que tal como o seu sonho lúdico de retornar à querida Amsterdam onde se conheceram -, nunca é alcançado.
Isso é ainda mais fragilizado na interação com os coadjuvantes, que especialmente nas sequências tomadas por diversos nomes, demonstram não pertencer à mesma página de reconhecimento das próprias limitações. É como se o diretor não conseguisse transmitir totalmente sua proposta de ironia, culminando em um microcosmos frágil dividido entre os que reivindicam atuações mais naturalistas para si e os poucos à vontade para se entregar à liberdade linguística que a obra poderia permitir.
É curioso como esse exibir exagerado de grandes nomes atuais da indústria – entre os quais podemos citar Rami Malek, Anna Taylor-Joy e até a cantora Taylor Swift – até paródia de maneira interessante o antigo starsystem, quase reconhecendo as engrenagens trilhadas no passado da Sétima Arte em confluência com a sua dimensão metalinguística – ainda que bastante tímida. Mas em sua execução plena, entretanto, isso acaba apenas frustrando o que poderiam ser boas contribuições, estendendo a narrativa além da conta e frustrando atores, como Robert de Niro, que pelas expressões não desejavam estar ali.
Finalmente, o didatismo através do qual é oferecido o subtexto do longa não apenas produz obviedades redutoras – especialmente no que diz respeito aos comentários antifascistas -, como também revelam a fragilidade generalizada do roteiro em primeiro lugar. Se não na estruturação de seus atos, a forma como ele disfarça os seus toques de propaganda militar – mascarados pela presença nada representativa de figuras “periféricas” que apenas orbitam a produção – fazem do filme uma obra que não dialoga com nenhum público em específico.
Desse modo, “Amsterdam” se mostra uma obra de cunho histórico de difícil digestão. Não pela falta de acessibilidade, haja visto a inúmera quantidade de faces conhecidas e a facilidade de compreensão de seus tópicos mais críticos, mas justamente pela fragilização excessiva desses últimos. Embora até acerte em alguns de seus pontos cômicos, tem-se em sua falta de coesão um projeto descompromissado com os discursos que alega defender e, principalmente, uma ausência de energia no uso de falsas liberdades criativas.