“ALMA DO DESERTO” – Afirmação de identidades
Ao longo de quarenta e cinco anos, Georgina Epiayu empreendeu uma longa jornada para ter sua identidade reconhecida oficialmente. Como mulher trans, enfrentou preconceitos na família, na comunidade indígena e na sociedade colombiana. ALMA DO DESERTO é um documentário que acompanha esse percurso para que ela conseguisse uma carteira de identidade com as devidas correções em relação ao seu gênero, e assim, tivesse acesso a outros vários direitos. É improvável que não se note, então, que a busca se desdobra em múltiplos sentidos e todos eles capazes de envolver a sensibilidade dos espectadores.
Georgina é da etnia Wayúu e, como ela mesma afirma, sempre se reconheceu mulher apesar de ter iniciado tardiamente o processo de transição de gênero. Aos setenta anos, a luta por uma nova carteira de identidade adequada para ela encontrou muitos obstáculos, como a intolerância de vizinhos que incendiaram sua casa, a perda de outros documentos por conta do incêndio e o abandono dos dois irmãos preconceituosos. O estado de saúde deteriorado e as longas caminhadas pelo deserto são mais algumas dificuldades enfrentadas por sua resiliência. Ao seu lado, em uma pequena parte da jornada, está a diretora Mónica Taboada Tapia, que faz do filme um registro da existência de Georgina.
Em um nível imediato, a busca pelo reconhecimento da identidade está ligada ao gênero. No cartório, Georgina lida com os entraves burocráticos para a alteração do documento, tendo problemas para entender a lentidão da oficialização. Os funcionários insistem na existência do registro de batismo como Jorge e na relação entre as impressões digitais e o gênero masculino. Por mais que se identifique e demonstre visualmente ser uma mulher (especialmente pelas roupas como ela pontua), nada disso é aceito pelas instituições do Estado colombiano. O preconceito afeta outras questões suscitadas pela aquisição ou não do documento, como o direito de votar nas eleições do país e a obtenção de mantimentos e remédios entregues como auxílio do governo. A narrativa adota um tom observador nesses momentos, captando os cartórios cheios (ocupados por outras pessoas indígenas que não conseguem retirar a documentação por empecilhos colocados pelas leis dos não indígenas) para indicarem a desorganização daquele trabalho a ponto de inviabilizar a satisfação das necessidades de cada indivíduo ali presente.
No caminho de volta para casa, a busca por identidade ganha outros significados. Georgina é indígena, pois, entre outros fatores, possui uma conexão profunda com a terra e a natureza. Não se trata apenas do acesso a fontes de subsistência, mas de valorização elementos que ajudam a definir seus valores culturais. Por isso, a câmera observa as caminhadas com uma abordagem naturalista que cria uma forte sensação de proximidade com aqueles ambientes áridos e simples, de importância para os povos estabelecidos. Alguns planos abertos situam a vastidão do deserto e a ocupação indígena nas reservas, já planos mais fechados enfocam detalhes aproximados dos animais, dos rios e da vegetação. A decupagem também entrelaça as imagens de seres humanos e dos demais fatores naturais, como os enquadramentos dos habitantes antes ou depois de elementos da natureza e a transição de um trecho do deserto para um close de Georgina. Ao mesmo tempo, as ameaças contemporâneas a que as comunidades originárias estão submetidas se fazem presentes pela poluição hídrica e pela invasão de terras.
Qualquer identidade social a ser considerada não é estática nem homogênea, logo Georgina é muitas em uma só. Ela é mulher, trans, indígena e idosa, uma sobreposição de imagens relacionadas à dominação e discriminação sofridas. A interseccionalidade evidencia a complexidade dos sujeitos sociais quando se percebe a combinação da etnia Wayúu a uma identidade de gênero não heterossexual, acima de tudo, com a rejeição dos irmãos por alguém que eles somente veem como homem. Georgina constantemente reafirma ser indígena, o que fica patente nas visitas feitas à sua antiga comunidade e a outros locais onde conheceu pessoas queridas. Nas suas ações, existe a predisposição de manter vivas conexões com seu povo, a ancestralidade e as tradições culturais, seguindo por um vaivém que aproxima passado, presente e futuro. Mónica Taboada Tapia apresenta isso através de sequências construídas como poesias líricas ou conflitos internalizados nos corpos dos personagens, vistas, por exemplo, na justaposição da mulher em silêncio sobre a luz natural do deserto e no encontro silenciosamente hostil entre os três irmãos.
O cuidado com o qual a documentarista retrata a protagonista cria uma empatia muito grande. De início, o público poderia conceber, racionalmente, que o vínculo emocional é puramente feito entre Georgina e a diretora. Isso porque o filme faz questão de destacar desde o princípio que se a sociedade, o Estado e alguns indígenas não reconhecem a existência daquela pessoa, o cinema pode fazer isso ao mostrar suas dores, anseios, relações e desejos. Por si só, é uma afirmação poderosa que lembra como o audiovisual pode criar pontes para conhecer realidades diferentes e vidas antes desconhecidas. Com o passar do tempo, a empatia se amplia porque contagia também os espectadores. Georgina não fala muito, é simples, demonstra grande preocupação por seus semelhantes, mantém-se comprometida com seu objetivo e tem noção do pouco tempo de vida em seu futuro próximo, todas características que levam a desejar que ela possa ter momentos felizes e a satisfação de ver sua identidade reconhecida. Como não se comover com os closes nos últimos minutos que revelam o rosto dedicado a uma luta justa?
“Alma do deserto” não se deixa levar pela urgência da temática social no mundo contemporâneo para minimizar a importância da construção narrativa e estilística. De tempos em tempos, são lançados filmes que querem abordar um tema quente de seu momento histórico, mas o faz sem se apropriar de forma expressiva da linguagem cinematográfica. O documentário de Mónica Taboada Tapia não sofre desse mal. A sensibilidade de sequências poéticas, o registro da complexidade das identidades de Georgina e a observação cuidadosa do ambiente sem a necessidade de muita verbalização contribuem para a força da obra. A documentarista, por sinal, tem consciência de sua presença potencialmente intrusiva na jornada da mulher, não se esconde do fato nem chama atenção exagerada para si. A câmera e a diretora podem “aparecer” quando algumas crianças curiosas olham em sua direção, amigas de Georgina respondem como se estivessem em uma entrevista e a própria protagonista conversa com ela sobre o ato de filmar.
Um resultado de todos os filmes que já viu.