“ALL THAT BREATHES” – Realidade perdida entre a magia e a concretude
Não é incomum assumir a proposta documental como um registro realista daquilo que nos cerca. Embora muitos documentários se sustentem pela mínima intervenção no objeto analisado, muitos autores se permitem observar o lirismo também presente na realidade. Isso permite dar atenção à aspectos mais magicos do cotidiano, e nem por isso menos complexos, como é o caso do assunto retratado em ALL THAT BREATHES.
Ambientado em uma pulsante Nova Déli, o longa registra tensões sócioculturais que interferem na qualidade climática do país indiano. Cientes do impacto que essas conturbações geram sobre a fauna local, dois irmãos administram uma clínica para aves, especializada em cuidar do chamado Milhafre-preto. Vítima de quedas frequentes, a espécie centraliza assim um panorama bastante sensível de discussões políticas sobre a Índia.
Atento aos contrastes entre a beleza natural do universo aéreo e a estagnação gradual desse centro mundial, chama a atenção o dinamismo com o qual o diretor Shaunak Sen consegue costurar esses dois microcosmos bastante próprios. É notável a naturalidade com a qual ele demonstra as teias que permitem a estruturação desse ecossistema delicado, traçando a dualidade entre deslumbrantes imagens no ar e assustadores planos terrestres que destacam a poluição, por exemplo.
Tal estruturação, mesmo que ainda flerte com recursos mais convencionais de peças culturais evidentemente políticas – e que nisso autorizam os depoimentos clássicas das personagens objeto, cuja escolha de palavras mistura o poético e apontamentos pragmáticos -, se destaca pela maneira como quase suspende a verdade dura que permeia a obra.
A produção mescla assim enquadramentos mais lúdicos – que ainda que capturem fenômenos reais da natureza, os esculpem na escolha cuidadosa de luz e enquadramento – com uma câmera que pouco intervém nas cenas desenhadas pela tensão de Nova Delí, reservada à observação. Nessa mistura, a própria linguagem de documentário reinvindica as suas contribuições para a discussão – como podem essas duas realidades permanecer coexistindo?
Vem justamente dessa ânsia de compreensão da natureza o belo trabalho dos irmãos Mohammad Saud e Nadeem Shehzad, que investem em nada mais do que uma tentativa de interação com o meio que os cerca. É curiosa a maneira como a direção coloca, por exempla, uma relação análoga entre as relações da dupla e seus parentes e da mesma e as aves resgatadas. Fica clara uma transposição de seus mundos individuais para a dedicada ligação que estabelecem com os Milhafres pretos resgatados, e em cuja salvação tentam reaver a sua própria maneira de mudar a realidade.
Finalmente, é essa tentativa até transcendental que unifica o filme como um todo, merecendo ainda mencionar a simbologia religiosa que reveste o pássaro em questão. Reconhecido como um sinal de prosperidade, fica clara que um dos motivos de sua destruição – ainda que indireto na amplificação da poluição atmosférica – se encontra nos altos índices de perseguição religiosa. Em matéria prática, tal aspecto da análise complexifica o dia a dia dos irmãos, que lidam com a perseguição a praticantes do Islamismo, bem como estabelece uma espécie um lirismo sádico de reversão dos próprios propósitos contra ele mesmo.
Registrando com a maestria a magia da natureza que se esgueira por entre a densidade urbana, mas que ainda assim é reconhecida com um merecido olhar crítico, “All that breathes” traz um ponto de vista único na retratação da eclosão de um complexo centro cultural: a ótica de uma beleza apenas existente no natural. Dessa forma, o documentário se destaca por misturar o lúdico ao peso do real, traçando um grito de urgência através da relação que Mohammad e Named com os pássaros resgatados.