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“ALICE GUY-BLACHÉ – A HISTÓRIA NÃO CONTADA DA PRIMEIRA CINEASTA DO MUNDO” – A fada do cinema

Existem divergências sobre o surgimento do cinema. Prevalece a data de 28 de dezembro de 1985 como o seu nascimento, data em que os irmãos Lumière, em Paris, promoveram uma sessão (pelo preço de um franco por ingresso) em que exibiram para cerca de cem pessoas curtas de sua autoria – entre eles, “A saída dos operários da Fábrica Lumière”, que teria sido sua primeira produção. Antes, porém, em 22 de março, os irmãos organizaram outra sessão, com público menor e menos solene, também em Paris. Era a primeira sessão pública do Cinématographe. Nesta, dentre os presentes estava aquela que muito depois foi reconhecida como a primeira cineasta da História. É a sua história o assunto de ALICE GUY-BLACHÉ – A HISTÓRIA NÃO CONTADA DA PRIMEIRA CINEASTA DO MUNDO.

O documentário reúne a vida e a obra de Alice Guy-Blaché, que, ainda no fim do século XIX, com apenas vinte e um anos, já se aventurava no – até então completamente novo – mundo do cinema. Por algum motivo, seus filmes e seu legado foi se perdendo com o passar dos anos, de modo que o filme expõe como Guy-Blaché tem sido recuperada e inserida nos livros de História do Cinema.

(© Arteplex Filmes / Divulgação)

A grande preocupação de Pamela B. Green – produtora, diretora e corroteirista do documentário, juntamente com Joan Simon – é estabelecer o status que Guy-Blaché merece enquanto primeira cineasta do mundo. O filme faz uma síntese do histórico pessoal da francesa, incluindo, por exemplo, a viagem da família para o Chile. São, porém, circunstâncias que apenas contextualizam sua vida no cenário histórico e que, em regra, não reverberam no seu trabalho. De acordo com a própria Guy-Blaché, seu chefe, Léon Gaumont, a liberou porque o trabalho de cineasta, na sua ótica, era “coisa de mulherzinha”. Isso não significa, porém, que foi fácil para ela filmar. O casamento malsucedido é circunstância que claramente afetou seu desempenho, considerando o machismo estrutural da sociedade naquele tempo.

O que talvez mais chame a atenção é o fato de que Guy-Blaché contrariou todas as perspectivas ideológicas de alguém da sua posição. Considerando que ela foi criada em um convento, o normal seria esperar uma obra mais conservadora. No entanto, seus filmes superam – e muito – o que poderia ser considerado vanguardismo para a época, na verdade sua visão pode ser considerada progressista ainda hoje. Entre filmes de perseguição e comédia entram temas como abuso infantil e machismo. Em “As consequências do feminismo”, ela fez uma sátira do medo nutrido pelos homens em relação ao espaço conquistado pelas mulheres. A cineasta ousou não apenas ao colocar uma mulher grávida em um filme seu (o que era atrevimento à época) como também, por exemplo, atuar em favor dos artistas negros (algo inimaginável).

Não apenas do ponto de vista ideológico a primeira cineasta estava à frente de seu tempo. A francesa foi inovadora, por exemplo, ao não se limitar a documentar a vida diária (como fizeram os irmãos Lumière), preocupando-se em contar histórias. Como declarado por Sir Ben Kingsley no filme, ela foi uma storyteller (“contadora de histórias”), enxergando nos filmes uma possibilidade que antes não era vista. Tecnicamente progressista, ela foi uma das primeiras (logo após de Thomas Edison) a usar o som sincronizado (dublado), através do Chronophone. Impressiona o número de barreiras ultrapassadas pela francesa, que parecia não enxergar limites na sua arte.

Através de pequenos apartes de Guy-Blaché (em entrevistas nos anos de 1957 e 1964), o documentário mostra, na voz da narradora Jodie Foster, a dificuldade de reunir um acervo a seu respeito – o que inclui não apenas os filmes em si, cuja autoria havia sido atribuída eventualmente a outras cineastas, mas também os instrumentos que utilizava. Através de animações, são feitas cenas nos locais que foram locações para seus filmes, o que dá maior vivacidade à história contada.

O título original do documentário é “Be natural”, que era praticamente um mantra que ela aplicava na vida profissional, ensinando aos que trabalhavam ao seu lado que naturalidade era fundamental. Um bom título seria “A fada do cinema”, pois o que a criadora de “A fada do repolho” (seu primeiro filme) fez, na verdade, foi mágica para alguém do seu tempo.