“AL-SHAFAQ – QUANDO O CÉU SE DIVIDE” – Não precisa ser um calabouço de sofrimento [44 MICSP]
A culpa por uma perda pode se tornar um calabouço de sofrimento. Ao invés disso, todavia, pode ser uma oportunidade para não cometer os mesmos erros. AL-SHAFAQ – QUANDO O CÉU SE DIVIDE lida com questões espinhosas como essas, dentro de um contexto por si só delicado.
A família Kara, da qual Abdullah é o patriarca, é turca, mas vive há alguns anos na Suíça. Enquanto ele cria os filhos Kadir, Elif e Burak com rigidez, Emine, a mãe, se esforça para compensar a rigidez com afeto. Quando Burak morre, Abdullah revisa seus erros enquanto sofre o luto e tenta lidar com a culpa ao mesmo tempo em que surge uma chance de redenção.
Com seu prólogo in media res, o diretor/roteirista Esen Isik não se preocupa em criar suspense sobre a trama. O importante não é por que Burak morreu, nem como morreu, mas o processo que o levou à sua morte e o que Abdullah pode fazer para atenuar a dor decorrente da culpa. Logo na primeira cena, Kida Khodr Ramadan demonstra o potencial dramático do longa ao expor seu doloroso luto. A partir de então, o que se vê é um processo de transição do pai e também do filho: Burak sai da vontade contida por uma vida ocidental (representada na reunião de rua), aliada a uma fuga do ambiente repressor do lar, para uma apatia mecânica decorrente de atividades que o pai não previu; Abdullah, por sua vez, é obrigado a rever sua afirmação segundo a qual “a fé não causa danos”.
Entre o abraço terno de Emine (Beren Tuna) e o ciúme de Kadir (Ali Kandas) estão não apenas atuações muito boas, mas também sentimentos complexos inerentes às interações familiares. Cobranças explodem de maneira sufocante e têm reflexos inevitavelmente trágicos. Ismail Can Metin capta bem a essência do jovem em conflito. Quanto mais ele muda, mais o visual da película se torna acinzentado (cortina e vestuário, por exemplo), porque sua vida em si mesma vai se tornando cinza. Enquanto relativamente livre, consegue demonstrar algum interesse por uma menina, depois, esse interesse precisa ser mais e mais sufocado, até se esvair em uma expressão vazia e de certo desprezo.
Repentinamente, Burak aparece de preto e com o cabelo cortado, fazendo um importante (e chocante) anúncio para seus pais. Há um erro em relação à cronologia do filme, que já era levemente confusa e agora parece desvairada. Parece uma elipse abrupta, mas é uma opção por abandonar por completo qualquer linearidade. Se dá certo em relação aos flashbacks de Malik (Ahmed Kour Abdo), o mesmo não se pode dizer com as recordações de Abdullah – mesmo tristes, elas perdem na intensidade pela falta de progressão.
A montagem sofre com o desacerto cronológico em visão macro, mas não em aspecto micro. No que se refere ao tema da culpa, por exemplo, quando Abdullah questiona, aos prantos, o que fez para merecer a morte do filho, a cena anterior é justamente um indício de resposta. Para acentuar que Kadir e Burak são muito mais semelhantes do que pensam, a montagem contrapõe abordagens dos dois a figuras femininas – afinal, eles têm interesses bem similares, inclusive coerentes com suas idades. É interessante, ainda, observar a sequência em montagem paralela em que Malik se senta no mesmo banco em que, no pretérito, tinha feito um lanche com Berdan (Robin Arslan).
Por outro lado, a narrativa isolada de Malik e Berdan é muito mais pobre que a da família Kara (em parte porque os flashbacks são esparsos em demasia). A fotografia é bastante árida nesse núcleo e a cor tijolo tem importante função para associar Malik a Burak (este com um moletom, aquele com um pulôver, ambos da mesma cor), porém os recursos gráficos não substituem a precariedade narrativa (que tampouco poderia ser substituída com a simples figura de uma criança desamparada). Além disso, existem lacunas consideráveis nessa narrativa – por exemplo, o que Berdan foi fazer quando deixou Malik sozinho após serem remunerados?
Abdullah e Malik estão em um veículo verde (a cor da esperança) em algumas cenas, ambos em direção a um futuro melhor. Este é um exemplo de como “Al-Shafaq – quando o céu se divide” é bom em metáforas (outro exemplo é o pássaro de Malik, indicando que ele está prestes a alçar voos para longe dali), deixando a desejar no literal (o roteiro, em especial). É uma obra, todavia, que calorosamente encara o luto não como um local do qual não se pode fugir, mas como uma oportunidade de melhorar como pessoa – algo que ultrapassa quaisquer barreiras geográficas ou religiosas.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.