“AGOSTO NA CASA DA AKIKO” – O humano, o natural e o transcendental
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
Determinadas obras proporcionam uma experiência cinematográfica singular. Consequentemente, o efeito geral após a conclusão da narrativa pode ser catártico de diversos modos. Pode ser a culminância da diversão, de reflexões intelectuais, de descargas emocionais, de experimentações estéticas e até um pouco de cada um desses impactos combinados. Ou ainda pode ser um misto de sensações que atravessa misteriosamente os espectadores e coloca em questão o que poderia ter possibilitado uma catarse aparentemente tão inesperada. A tentativa de assimilar o mistério do envolvimento emocional e da reação final de moldar a experiência com AGOSTO NA CASA DA AKIKO.
Caso uma sinopse breve do filme fosse analisada, não haveria tanto material para sugerir o tom misterioso que se desenvolveria. Isso porque a premissa não deixa de ser simples e nada indicativa das sutilezas e ambiguidades que viriam. Alex viaja para uma ilha do Havaí, onde passou sua infância, com o objetivo de encontrar sua velha casa. Depois de ter seus planos frustrados por notícias ruins, ele acaba conhecendo e se hospedando em um retiro liderado pela budista Akiko. Ao ficar ali, o homem passa por uma jornada espiritual de autoconhecimento e busca por suas raízes.
Não leva muito tempo para que a construção cênica do diretor Christopher Makoto Yogi chame a atenção e leve o público a se questionar o que poderia ter movido aquela escolha. Os personagens são enquadrados à distância, estão quase fora do quadro, são encobertos pela escuridão ou se posicionam de forma a não deixar todo o rosto aparecer. Então, a mise-en-scène dá grande importância ao que pertence aos cenários naturais – florestas, montanhas, lagos, céu, terra, animais, plantas, flores – através de planos gerais ou planos de conjunto com os personagens, sem desprezar a presença humana ali e as relações com o ambiente, Em muitos momentos, é essa a dinâmica que impera, inclusive quando as cenas se desenrolam em espaços fechados e destaca os aposentos. Como uma pista para apreender essa unidade estilística, um folheto no roteiro budista surge em cena e nele se lê: “Como convidado, não deixe rastros, nem rosto. Deixe apenas uma “presença”. um sentimento de que por um momento você amou o lugar tão profundamente que tanto você quanto o lugar se transformam, e ambos se tornaram mais belos, mais naturais e inseparavelmente só”.
Estes dizeres poderiam ser simplesmente orientações para os hóspedes, mas cada palavra tem seus sentidos ampliados conforme a narrativa se apropria da ideia do panfleto. Assim, a jornada de Alex pelo Havaí passa pela criação de vínculos afetivos com o local a ponto de saber apreciar uma caminhada pela floresta, o nado por um lago tranquilo, a diversidade da fauna, a beleza da flora, a contemplação de um terreno vulcânico vasto e outras possibilidades. Esteticamente, o cineasta demonstra como o protagonista pode deixar sua “presença” no lugar, seguindo os termos do panfleto, já nas primeiras sequências: um plano estático mostra as plantas de um jardim, em seguida, a câmera se movimenta lentamente pelo interior de uma casa ainda enquadrando seu exterior até encontrar Akiko, que entra na residência, faz suas tarefas e sai novamente para tocar um sino no jardim; se tudo isso acontece calma e silenciosamente, as cenas posteriores, nas quais Alex toca saxofone, viaja de avião e percorre de carro uma estrada, seguem um ritmo mais intenso com sons estridentes e uma velocidade maior entre os planos.
Levando em consideração novamente o panfleto, o texto recomenda que se entregue tão abertamente ao lugar para se sentir transformado e transformar o Havaí. Dessa maneira, o protagonista e o meio se encontram e se relacionam em situações contemplativas, minimalistas, introspectivas e de pouquíssimos diálogos porque seu retorno à infância também envolve uma nova conexão com o ambiente. Esperando reencontrar sua avó e sua antiga casa, Alex, na realidade, encontra uma paz interior a partir do contato com a natureza que lhe faltava na agitada vida de músico em grandes cidades. A princípio, esse relacionamento poderia ser mediado por sequências que podem soar lentas e monótonas, mas as passagens em que o homem apenas vivencia a delicadeza da ilha com sons diegéticos do canto do pássaros, do movimento das águas e o fluxo dos ventos propiciam sentimentos tranquilizadores, pacíficos e acolhedores. Como demonstração perfeita da sintonia entre o que é humano e natural, Christopher M. Yogi faz fusões da imagem do personagem com imagens de estradas e florestas como metáforas do encontro de Alex com a terra natal.
As interações de Alex com o meio poderiam ser desenvolvidas a partir dos elementos naturais. Se assim fosse feito, o processo de autoconhecimento e de reencontro com as origens estaria incompleto. Logo, o roteiro também aborda o convívio com os habitantes do Havaí como uma etapa vital do arco do músico, pois pressupõe a criação de vínculos humanos nos momentos mais prosaicos possíveis. Fazer serviços comunitários com outras pessoas retirando madeira da mata, interagir com uma menina tentando prender uma mosca, brincar com a mesma menina imitando um galo e mergulhar em um lago com outro homem prendendo longamente a respiração são ações capazes de demonstrar a força dos pequenos detalhes. São essas situações que pontuam a existência de uma trama composta por poucos e simples acontecimentos cotidianos, além de reafirmar a presença do meio ambiente interligado aos indivíduos, como árvores, floresta, lago, água e animais.
Outra parte do meio ultrapassa a dimensão material e alcança níveis simbólicos, criando mais variáveis dentro do mistério que preenche a experiência com a narrativa. Ele participa das festividades locais, dançando e desfrutando das músicas típicas com senhoras da região, algo que combina a cultura havaiana com visões do mundo do budismo. Além disso, compartilha com Akiko alguns instantes místicos, em que se abre para aspectos espirituais de sua vida e transcende para esferas da existência baseadas em fatores não mundanos, como nas homenagens prestadas aos ancestrais durante a retirada de madeira da área e na oração feita por Akiko ao criador Ke Akua em prol da abertura de Alex a mistérios profundos conectados à natureza e da aquisição de sabedoria para se curar. Esta última cena em especial, retrata o arco dramático de Alex, que sutilmente passa por conflitos relacionados à perda de referências familiares e emocionais e à busca por novos laços que deem sentido a ele.
Resgatando o conteúdo do panfleto do retiro, ser humano e lugar poderiam se transformar para se tornarem mais belos, naturais e inseparavelmente um só. Nessa linha, todos aqueles personagens interferem na paisagem inevitavelmente, como a ressignificação de um terreno vulcânico inativo para uma vastidão de beleza e de possibilidades. E a paisagem interfere em Alex consideravelmente como uma dimensão que se relaciona com o cotidiano, preenche sua identidade e se liberta para um universo místico e espiritual. Esse entrelaçamento se concretiza na sequência final que desencadeia a principal fonte de mistério do impacto sensorial do filme, novamente com a fusão de imagens de Alex, dessa vez, caminhando pela floresta até chegar a uma caverna, começando tocar saxofone e se transportando para um palco de teatro para se apresentar para um casal de idosos. O espanto diante da conclusão se inicia com a fusão desses planos e se intensifica com uma trilha sonora enérgica e vibrante (contraponto a tudo que havia até então). Inicialmente, pode ficar a dúvida do porquê este final mexeria tanto com as emoções. Com o tempo, a experiência sensorial intrigante se converte na expectativa de uma revelação filosófica sobre a vida. Mesmo ambígua e abstrata, a revelação mostra que humano, natural e transcendental se unem para construir a existência de Alex e de todos nós.
Um resultado de todos os filmes que já viu.