“AFTERSUN” – A sinfonia da lembrança pelo tato e o olhar
A força das memórias que irradiam de nosso passado é indescritível. Capazes de burlar as barreiras entre imaginação e realidade, elas invocam os seus protagonistas a revivê-las, transcendendo a finitude impressa por suas rédeas concretas. Nesse sentido, é interessante a capacidade artística de se cristalizar – ou pelo menos tentar – tais passagens, construindo campos oníricos e nitidamente artificiais por intermédio das liberdades oferecidas pela linguagem. Mas até que ponto esse exercício prioriza o alívio de reviver fragmentos esquecidos e não se dedica ao resuscitar de fantasmas atordoantes? Em sua estreia, é justamente essa margem que AFTERSUN escolhe navegar.
As disgressões de Sophie a respeito de uma antiga viagem de férias ao lado do pai a desafiam a tentar separar o real e a fantasia, forçando-a a mergulhar em uma intensa experimentação de sentimentos do passado. Brincando com a própria natureza das imagens ali concebidas, em função de um pequeno gravador que a protagonista em sua versão criança traz consigo, tem-se uma emocionante jornada através de rastros do passado.
Apesar do seu ponto de partida extremamente comum, o longa encontra a sua força na forma como investe em uma concretização tátil de seus enquadramentos. A justificativa por detrás da dinâmica entre os protagonistas pode até surgir de um procedimento clássico com início, meio e fim, mas não demora muito para a direção se desvencilhar para dentro de seu atordoante e próprio universo sensorial.
Apesar de alguns recursos de montagem didatizarem um pouco a experiência, a autoria da estreante Charlotte Wells se destaca por sua primitividade na investigação dos planos, que impulsionam os movimentos de câmera pela lógica do desejo pelo imagético. Isso dita uma operação bastante alinhada à ânsia do olhar que, especialmente atribuída à personagem de Frankie Coro, preserva uma primeira instância de origem cinematográfica profundamente associada à busca pela compreensão e pelo desconhecido.
Tudo acaba assim recoberto de uma inocência bastante palpável, mas que em pouco facilita a experiência. A escuridão de vultos que encaram o silêncio e os segundos para se recuperar o ar típicos do primeiro mergulhar de uma criança ainda estão ali presente, deixando ruídos que ditam um ritmo paciente e que em momento algum tenta os esconder. Até que ponto devemos nos permitir acreditar nessas imagens sedutoras? Por mais convincentes que sejam, elas estão longe de honrar a verdadeira dramaticidade do relacionamento ali impresso.
Nesse mesmo sentido, e pelo fato de se centralizar no relacionamento concreto entre duas personagens bem definidas – ainda que não saibamos quase nada sobre elas, levados a conhecê-las muito mais pelo modo como tateiam uns aos outros e o espaço ao seu redor -, é interessante como a obra reconhece essa tentativa indulgente de controlar os laços transigentes de unificação entre duas figuras, concepção evidenciada especialmente pela câmera manuseada pela criança.
Até mesmo essa pluralidade de texturas visuais revelam os desgastes gerados por esse processo falho, que prioriza a reciclagem de situações semelhantes – encantado pelas soluções que encontra na unificação gráfica entre planos, o que poderia reduzir a experiência ao espetáculo mas acaba corroborando para o aprisionamento cíclico do estado psicológico da protagonista e do espectro virtualizado por Paul Mescal – em detrimento de um avanço bem definido entre blocos.
É como se o filme se permitisse aproveitar esse oásis de uma memória coletiva, se deixando infectar pelos espaços vazios que assombram esse processo, mas sem abrir mão da sua essência. Uma essência pouco preocupada em realmente identificar as verdades por detrás daquela relação paternal, mas sim em extrair as impressões inconscientes deixadas pelas sombras – tal como os brilhantes planos no quarto escurecido -, pelos toques e pela maleabilidade dos materiais com os quais interagem – pelas ondas do mar e pela porosidade da areia.
Tem-se assim um lindo experimento de rememoração imagética de uma persona passada, figura essa que se fundamenta não apenas em nossas raízes mas na maneira como nos impulsiona a construir o futuro a partir de nossos mergulhos ao que já atravessamos. Mergulhos esses comumente fadados a se converter em ciclos de retorno eterno, tal como o assustador plano final, cujo movimentar da câmera imprime a incapacidade de se fugir desses exercícios de digressão mental.
Esses aspectos tornam “Aftersun” uma sinfonia tátil de desgaste emocional, tão motivada pela força da relação entre um pai e uma filha quanto o é movido pelo ímpeto de curiosidade que leva um recém-nascido a capturar o incompreensível com o olhar e buscá-lo com o inocente apontar de um polegar. Isso, é claro, sem jamais se esquecer que as marcas desse processo podem transitar facilmente da beleza de um bronzeado para as dores de queimaduras de terceiro grau.