“AFIRE” – O que há por trás [47 MICSP]
* Filme vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Berlim.
O que há por trás do comportamento de Leon, protagonista de AFIRE? Por que ele não consegue sorrir verdadeiramente, interagir com os demais, socializar, ir à praia e assim por diante? Mesmo quando se apaixona, não consegue se entregar como faz Felix, como se tivesse algum freio impedindo-o a todo momento. Teria o fogo do incêndio a força para mudar seus atos?
Na região do mar Báltico, os amigos Leon e Felix passam alguns dias na casa de praia da mãe de Felix. Para a surpresa de ambos, Nadja, a sobrinha de uma amiga da proprietária, também estará lá. Ao grupo é adicionado Devid, um salva-vidas da região. A reunião dos quatro tem momentos de alegria, que, todavia, paulatinamente resseca da mesma forma que a floresta da região, afetada por incêndios.
O diretor e roteirista Christian Petzold tem em seu filme influências do cinema de Éric Rohmer, a começar pelo protagonista do longa, Leon, que frequentemente entra em contradição. Em diversos momentos, o jovem diz que precisa trabalhar, porém, na prática, raramente o faz, “gastando” o tempo com ocupações banais. Ironicamente, Felix, aparentemente em ocupações banais, encontra inspiração para o seu trabalho e acaba sendo mais produtivo. Em princípio, a dedicação ao trabalho é o que está em primeiro lugar para Leon, mas a realidade não é bem essa. Frágil, ele se torna agressivo com qualquer indício de crítica, desdenhando, por vezes gratuitamente, daqueles que o cercam (é o que faz com os outros três, em circunstâncias distintas). O desdém é fruto também de seu orgulho (“não chamaria aquilo de crítica”), e de fato ele chega a se sentir humilhado (o que se agrava com a chegada de Werner). A escrita se torna um escudo para Leon, que prefere não socializar mesmo quando quer, como se, como os protagonistas de Rohmer, não assumisse o que deseja. Leon vai à praia com Felix, mas não se diverte como o amigo.
Nadja (Paula Beer, com um cativante sorriso que corporifica a leveza da personagem), Felix (Langston Uibel, divertido pelo contraste com Leon) e Devid (Enno Trebs, mais contido) dão vazão aos seus desejos, por vezes mais profundos. Quase sem filtros e apesar de ser um período extraordinário (temporada na casa de praia), a luxúria pode ou não ser a porta de entrada para o amor, o que é indiferente, pois estão lá para se divertir. O mesmo não vale para Leon (Thomas Schubert, excelente em suas expressões de ressentimento e desgosto perenes), que, retraído, vai do ciúme à raiva tanto dos outros quanto de si (ao dormir quando, segundo julga, deveria estar trabalhando). Para além das interpretações do elenco, o figurino exerce importante função simbólica desses comportamentos, uma vez que, enquanto os três primeiros usam vestuário típico de praia (poucas roupas e coloridas), Leon está sempre de calça e camisa em tons escuros. A sobriedade e a formalidade do figurino do protagonista se contrapõe, assim, aos (poucos, geralmente) trajes de Felix e Devid (nudez total ou parcial) e ao vermelho do vestido de Nadja.
A cor vermelha é a transfiguração gráfica de dois sentimentos contraditórios. O primeiro é resultante da narrativa psicológica elaborada por Petzold, na qual Leon se apaixona por Nadja. Através de sobre-enquadramento, ele a olha pela janela ou pela porta, normalmente escondido, de uma maneira sorrateira – e, mais uma vez por ironia, Leon é objeto de cenas cômicas quando é ele quem é surpreendido por atos sorrateiros de outros. Em outras palavras, há pitadas de humor quando o jovem escritor é surpreendido por fatos que não sabia (fatos, por assim dizer, sorrateiros, ao menos para ele), ou personagens que estavam atrás (literal e metaforicamente) dele. De outro vértice, o vermelho, destacado nos rompantes da fotografia – o azulado da madrugada é interrompido pelo incêndio -, é a representação simbólica da devastação iminente de sentimentos, tanto aqueles expressos quanto os contidos. Há momentos em que a fotografia transmite a alegria (a cena das raquetes e mesmo o visual da área em que o grupo está). O mesmo ocorre com o som (os passarinhos). Existe algo, contudo, que configura o oposto desse sentimento, como é o caso das queimadas (visual), que caracterizam risco a todos, e os mosquitos (som), que são um incômodo inegável.
Petzold não tem em “Afire” um filme óbvio. Muito de seu conteúdo está no que não é dito, mas é subentendido, muito de sua forma é contida em detalhes que podem passar despercebidos, como o mencionado sobre-enquadramento reiterado. As personagens do longa são pessoas comuns fazendo atividades quaisquer. Ao final, entretanto, a obra cresce para dar um “soco no estômago” do protagonista (e do espectador), algo que consegue ser tocante sem precisar espetacularizar o drama. São essas características que estão por trás do encanto do filme.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.