“ADORÁVEIS MULHERES” (2019) – Específico, mas universal e atemporal
“Mulherzinhas” é um livro que definitivamente caiu nas graças da indústria do cinema: na era do cinema mudo, foram duas versões (1917 e 1918); em 1933, a estrelada por Katharine Hepburn; em 1949, a primeira colorida, com Elizabeth Taylor e Janet Leigh no elenco; em 1994, com Winona Ryder, Kirsten Dunst, Claire Danes e Susan Sarandon; em 2018, para comemorar o aniversário de 150 anos do livro. Dirigida por Greta Gerwig, ADORÁVEIS MULHERES, de 2019, é a sétima adaptação cinematográfica (sem considerar as outras mídias) de “Little women” (nome original do filme e do livro). Um número tão expressivo não pode ser à toa.
A obra trata de quatro irmãs – Jo, Beth, Meg e Amy – que passam da adolescência para a vida adulta na ausência do pai, que está lutando na Guerra Civil (dos EUA). Apesar das personalidades diferentes, o que por vezes gera atritos, elas se mantêm unidas face ao que a vida lhes impõe, como doenças, dificuldades financeiras e casamento.
É fácil perceber que, ao dirigir o filme, Greta Gerwig quer explorar o Zeitgeist (em especial o minúsculo espaço dado às mulheres), aproveitando no seu roteiro todo o potencial temático do livro de Louisa May Alcott. No prólogo, Jo recebe a orientação de um editor: se a protagonista da história criada for mulher, ela precisa se casar ou morrer no final, ou ainda os dois. Naquele contexto, a situação era a que tia March descreve: para não se casar, uma mulher precisa ser rica, pois mulheres têm poucas opções.
Por outro lado, a fascinante protagonista vivida pela sempre competente Saoirse Ronan não se interessa pelas imposições socioculturais. Embora ela pareça segura de si, o fato de não assinar seus textos aponta em direção contrária – assim como a reação às críticas de Friedrich, papel do equivocadamente escalado Louis Garrel, (qual a razão de colocar um ator francês interpretando um alemão vivendo nos EUA?). De todo modo, a liberdade é fundamental para ela, o que impede uma aproximação de Laurie (Timothée Chalamet, ora um rapaz doce, ora um projeto de boêmio), a quem relega uma posição de forte amizade e nada mais. É emblemática a cena em que ela vai à casa dele: enquanto o jovem se encanta com ela, o que chama a atenção da moça é a biblioteca da residência.
Interpretada por Florence Pugh, Amy é praticamente o oposto de Jo, revelando-se vingativa ao ser excluída de um passeio, porém frágil ao precisar ser salva no gelo. Ronan tem o papel mais relevante, já que é o fio condutor da trama, porém é Pugh que se destaca na dramaticidade da multifacetada personagem. É ainda melhor quando ela interage com Meryl Streep, que aparece pouco, mas brilha muito (basta conferir seu fenomenal trabalho de voz) ao viver uma tia idosa que, à sua maneira, recomenda o que acha melhor para o futuro das sobrinhas. No que se refere ao envelhecimento, Streep é a única do elenco que recebe um cuidado especial na maquiagem, com realce na região dos olhos.
Esse é um considerável problema do longa: quase uma década se passa sem que as personagens envelheçam. É estranho ver Emma Watson como a irmã mais velha de Saoirse Ronan, as duas quase sem mudanças no transcorrer de pouco menos de uma década. Na versão de 1994, Kirsten Dunst, ainda criança, foi substituída por uma atriz mais adulta no mesmo papel de Amy. Gerwig adota (opção arriscada, pois pode confundir o espectador) outras vias (que não o elenco) para expor o período da narrativa, como a fotografia, que alterna entre tons quentes e frios para mudar a cronologia, além de alguns elementos pontuais (o comprimento do cabelo de Jo, dentre outros).
Isso porque seu roteiro não é composto de uma só linha contínua, mas fragmentos de duas linhas temporais (pretérito e presente diegéticos), que se unem sem linearidade. Parecendo um ciclo que se repete (tornando óbvio o distanciamento temporal), passado e presente se unem pelos assuntos, resultando em um trabalho de montagem soberbo. A título exemplificativo, Jo desce as escadas para perguntar para a mãe (Laura Dern, que pouco aparece) sobre o estado de saúde de Beth (Eliza Scanlen, idem) nas duas linhas temporais.
A sequência final em montagem paralela é deslumbrante, tanto quanto a forte trilha musical de Alexandre Desplat e os figurinos de Jacqueline Durran. Quanto ao vestuário, merecem destaque as sutilezas, como as roupas usadas pelas moças na praia (não mostrando praticamente nada de seus corpos) e o verde do casaco da cena em que Jo escreve (simbolizando sua esperança em criar sua obra-prima). A estética do longa é formidável.
Com “Adoráveis mulheres”, Greta Gerwig fala sobre afeto familiar, reivindicações femininas, efeitos deletérios da guerra e passagem da adolescência à fase adulta. Um coming of age cujo texto não tem nada de extraordinário, mas é coeso e aprazível. Não se trata de um filme inesquecível, mas uma produção muito bem feita, com ótimo elenco e voltada a sensibilizar o público. É um estudo específico quanto ao objeto (condição das mulheres jovens), local (EUA) e época (século XIX), que, todavia, não poderia ser mais universal e atemporal – justificando tantas versões.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.