“ADÃO NEGRO” – O meio-termo é o anti-herói
Herói ou vilão? Abençoado ou amaldiçoado? No meio desse maniqueísmo limitador entra ADÃO NEGRO, um anti-herói que provoca reflexões sobre valores pouco questionados em seu gênero, tais como liberdade, justiça e poder. Com erros e acertos, é um bom filme de ação, corroborando sua própria conclusão de que há um meio-termo (ou vários) entre os extremos.
Cinco mil anos após receber os poderes dos deuses egípcios e ser aprisionado, Adão Negro é libertado. Kahndaq não é a mesma com a qual ele estava acostumado, mas ainda carece de alguém que conceda liberdade à sua população. Porém, desta vez os obstáculos para isso têm mais de uma fonte: seus antagonistas são tanto os heróis quanto os vilões.
O roteiro assinado por Adam Sztykiel, Rory Haines e Sohrab Noshirvani surpreende pela tentativa de lidar com questões axiológicas espinhosas. Do ponto de vista do conteúdo, é este o ponto alto do longa. Enquanto anti-herói, Adão Negro é impiedoso e indiferente à morte de seus inimigos, o que se torna interessante quando sua perspectiva é contraposta à do Gavião Negro, que representa o seu oposto. Carter (Gavião) diz expressamente que, mesmo sem saber o crime de alguém, seja lá qual for, esse alguém merece ser submetido a um julgamento (e não à morte imposta pelo protagonista), cena na qual ele é vaiado pela população do local, mais interessada na punição inclemente. O tema gera interesse quando se percebe que, mesmo em sociedades hodiernas e reais, parcela da população prefere a punição imediata ao julgamento pelas vias legais. Ou seja, se Adão Negro fosse real, o seu olhar do justo teria a simpatia de muitos.
Para não padecer do mesmo mal que critica – o do equívoco do maniqueísmo -, o texto ironiza o que pode ser qualificado como uma certa letargia dos meios legais, representados pelos heróis da Sociedade da Justiça. Como uma censura velada à intervenção seletiva do governo dos EUA em outros países, uma personagem retira a legitimidade dos comandados do Gavião Negro para agir: “não é seu país, não é sua decisão”. A Sociedade da Justiça atua dentro do que seu governo ordena, abrindo uma enorme porta na qual entra Adão Negro, que ignora quaisquer regras de legalidade ou moralidade. Embora funcione como uma piada, ele realmente acha que uma criança deva receber ensinamentos sobre violência. Uma das melhores falas é aquela em que uma personagem declara para Carter que é fácil decidir quem é bom e quem é mau quando é ele quem traça a linha.
A fala merece destaque porque, no geral, os diálogos do longa são paupérrimos (como aquele em que Esmaga-Átomo pergunta a Ciclone qual o seu poder). Dentre os coadjuvantes, há dois núcleos, o dos heróis e o dos humanos. Dentre os heróis estão Gavião Negro (Aldis Hodge, ótimo por transmitir a irredutibilidade de Carter em sua visão) e Senhor Destino (Pierce Brosnan, que vai até além do que o material que lhe é dado em termos de personalidade para o papel), além de Esmaga-Átomo (Noah Centineo, em um papel que não foge dos que o que ele está acostumado) e Ciclone (Quintessa Swindell, que quase passa despercebida). Os veteranos são tão bons que mereciam mais tempo de tela (inclusive para aprofundar seu backstory); os novatos, praticamente irrelevantes (a diferença é que Centineo é engraçado e Swindell participa de cenas esteticamente belas). Quanto ao núcleo dos humanos, todos são ruins, salvo Karim (Mohammed Amer), que encontra uma ambiguidade poética na canção “Baby come back” (um conteúdo literal e uma superfície cômica).
Jaume Collet-Serra apresenta cenas de ação muito boas, com duas exceções: uma ainda no primeiro ato, que é uma imitação mal feita de cena idêntica envolvendo outro super-herói de outro estúdio); e as do terceiro ato, quando um vilão genérico e desnecessário deixa uma má impressão. O ritmo inicial é acelerado em demasia e há excesso no uso de slow motion, mas nada disso estraga a experiência, sobretudo pela prevalência de boa computação gráfica e uma estética visual apurada. Sendo Adão Negro um anti-herói sério e considerando que seu filme se leva a sério, o filtro escurecido, embora se assemelhe ao trabalho de Zack Snyder, é coerente com a proposta. As referências de Collet-Serra são igualmente adequadas, como quando ele aproxima sua obra do western (com referências explícitas e outras de linguagem) ou mesmo quando dialoga com outros super-heróis da DC Comics.
“Adão Negro” é concebido para fazer Dwayne Johnson brilhar, o que ocorre mais pelo carisma inegável do ator do que pelo seu desempenho enquanto tal (além da espetacularização do seu poderio quase ilimitado). Entretanto, o filme consegue sinalizar caminhos pelos quais consegue transitar sem recair na mesmice dos filmes de super-heróis, nos quais existem apenas os bons e os maus. A solução final é perspicaz não por reconhecer a zona cinzenta intermediária entre bondade e maldade, mas por encontrar nesse trânsito a posição correta para Adão Negro. Pode ser até mesmo perigoso normalizar o ímpeto justiceiro da personagem, mas o filme não coloca um ponto final no assunto. Ao menos é isso que a cena pós-créditos indica.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.