“ACQUA MOVIE” – Raízes [21 F.Rio]
O brasileiro descobre o Brasil a cada canto do território que vai, a cada pessoa que conhece e a cada novo hábito que toma contato. Definir uma identidade já é algo tão complexo por natureza, tratando-se de um país de proporções e riquezas continentais, o processo se torna ainda mais desafiador. São questões assim que ACQUA MOVIE suscita ao se aventurar pelas diferentes raízes formadoras da nossa sociedade: o meio natural, o meio familiar e traços culturais.
A busca pelas origens é o elemento constituinte das trajetórias de Duda e Cícero. Ela é a mãe e uma documentarista ambientalista que trabalha com a questão indígena. Ele é o filho de doze anos que adora surfe e vive com o pai Jonas. Após a morte do patriarca, o menino convence Duda a viajar de São Paulo para o sertão nordestino para conhecer a família do lado paterno e jogar as cinzas de Jonas naquela terra.
As primeiras raízes apontadas no roteiro do diretor Lírio Ferreira, de Paulo Caldas e de Marcelo Gomes são as familiares. A mãe é a figura ausente que mais se dedica ao trabalho, enquanto o pai é o educador constante do filho. Quando a tragédia acontece, Duda é forçada a mudar de papel, se reaproximar do garoto e enfrentar o ressentimento dele por ter passado muito tempo distante. Nesse sentido, a narrativa se inicia a partir do clássico conflito entre filho desamparado emocionalmente e um dos pais obcecado pelo trabalho visualmente traduzido pela fotografia e pelo design de produção: a paleta de cores é acinzentada e melancólica como a relação parental ali existente, enquanto os vários quadros com rostos de indígenas pela casa mostra a penetração do ofício de Duda na vida de todos.
Ao longo dos arcos dramáticos, outro tipo de raiz atravessa o desenvolvimento dos personagens: a água como recurso vital da existência. Na primeira cena, uma narração em off explica a mitologia indígena em torno dessa força da natureza enquanto é possível ver a correnteza de um rio. Nas demais, outros significados são construídos, como a simulação do surfe através de um brinquedo revela a paixão de Cícero pelo esporte; a gravação da previsão do tempo anunciada por Jonas e ouvida pelo rádio do carro indica sua profissão; a morte do pai acontece enquanto estava tomando banho; o luto da família é acompanhada pela chuva que cai e pelas lágrimas que ganham o rosto do menino. Nesses casos, as águas podem representar vida, características dos personagens, perda ou dor.
Aparentemente os embates entre mãe e filho seriam o centro da narrativa, mas logo a decisão de viajar para a terra de Jonas leva a história para outros caminhos. O tema da busca pelas origens familiares ganha espaço, atrelado aos conflitos com os parentes da linhagem paterna, especialmente o Tio Múcio, também prefeito da cidade de Nova Rocha. O drama advém do problema do coronelismo de grandes latifundiários, disfarçando o controle violento sobre os habitantes e o lugar com o carisma do político, como fica evidente nas agressões sobre os indígenas locais que reivindicam a demarcação de terras. Do bloco anterior para esse, ocorre um elegante raccord das chamas de um charuto para as ondas de um calor de uma estrada do interior – transição que também estabelece uma alteração na fotografia para uma paleta de cores mais intensa e exploradora das paisagens.
No novo segmento, a representação dramática das águas reaparece em outros contextos. Rocha era a cidade original onde os moradores viviam até ser inunda pelo mar e uma nova ser construída próxima; a parte interiorana da região sofre com a seca, enquanto a mais rica se “moderniza” com os investimentos da prefeitura em novos serviços e na promessa da transposição do Rio São Francisco. Portanto, a água ou a falta dela retratam a influência incontrolável da natureza, as adversidades criadas pelo próprio ambiente e o poder obtido por aqueles que poderiam manipulá-la em seu favor.
À medida que o autoritarismo de Múcio revela as injustiças sofridas pelos nativos (principalmente a perda de suas terras), novas camadas dramáticas são colocadas. A questão das raízes assume um viés histórico e social de valorização dos povos originários e de sua cultura, como se pode observar na longa sequência enfocando uma cerimônia religiosa e na constante luta pelo direito à terra. Dessa vez, as águas adquirem sentidos ainda mais densos, relacionados à identidade indígena, já que elas integram seus rituais e oferecem também outras possibilidades de internação com o ecossistema.
A princípio, as subtramas envolvendo os desmandos do prefeito e a violência sofrida pelos indígenas podem parecer não concluídas. No entanto, elas são trabalhadas em sintonia com a narrativa central de Duda e Cícero para estimular os dois personagens a se encontrarem e reconhecem como é o outro. Principalmente no caso do jovem, é a superação de uma tragédia enquanto cresce e precisa aprender quem é e de onde veio, abraçando as raízes que verdadeiramente o compõem e negando aquelas que apenas o prejudicariam.
*Filme assistido durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.