A VIDA INVISÍVEL – Coração e mente [43 MICSP]
Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que homens e mulheres, na prática, atinjam a igualdade. No entanto, a situação já foi muito pior para elas. Um pouco disso é mostrado em A VIDA INVISÍVEL, uma história que, apesar de não ser um “soco no estômago”, é um drama valoroso.
No filme, Eurídice e Guida são duas jovens irmãs que se amam muito, mas que se separam e acabam tendo trajetórias de vida bem distintas. A sociável Guida é a irmã mais velha, tendo de fugir de casa para se casar com um homem grego; Eurídice, talentosa pianista, é mais introspectiva e encontra dificuldades em concretizar seu sonho de ser pianista em razão do marido opressor.
Eurídice e Guida representam no roteiro de Murilo Hauser, Inés Bortagaray e Karim Aïnouz (que se basearam na obra original de Martha Batalha) duas facetas diferentes da mesma figura subjugada na época, a mulher. Sem recair em feminismo barato, o texto estruturado em drama se limita a retratar uma realidade: quando jovens, ficam sob o domínio do pai; após o casamento, estão em uma nova família e submissas ao marido.
Mais temperamental, Guida não se adéqua muito a esse pensamento machista, chamando o pai de ignorante e fugindo de casa por saber que o casamento com Yorgos não seria aprovado pelo genitor. Seu sofrimento é produto de suas escolhas, mas essas só existem em razão da limitação socialmente imposta. Isto é, sua liberdade era bastante limitada. Quando Guida afirma que a mãe é a sombra do pai, exerce um juízo de valor sobre esta, no sentido de que, diversamente de si, a mãe é incapaz de enfrentá-lo. Interpretada com vigor por Julia Stockler, Guida é a mulher que enfrenta a cultura e amarga as dolorosas consequências.
Isso não significa, contudo, que a vida de Eurídice é fácil. Se Guida representa o sofrimento resultante do confronto, Eurídice é o saldo da submissão. Tratada ora como objeto sexual, ora como dona de casa, o sonho de virar pianista se torna cada vez mais distante. Antenor (Gregório Duvivier, repugnante como o papel exige) não quer saber se Eurídice tem vontade de praticar sexo, ele a vê como obrigada a tal simplesmente por ser esposa – ainda que ela esteja passando mal, por exemplo. A partir do momento em que é casada com ele, não há espaço para sonhar além da própria família, pois esta exige – na ótica dele – dedicação integral. Por uma questão de estatura, Carol Duarte tem certa dificuldade de expressar fragilidade face a Gregório, mas convence no drama do papel.
No meio do simbolismo de gênero – onde há certo maniqueísmo (todos os homens são ruins e todas as mulheres são vítimas dos homens), justificado, porém, pelo viés do plot, voltado a demonstrar esse contexto -, o roteiro aborda a fraternidade entre as duas irmãs. O tema não é apenas terno, mas exposto de uma maneira doce através, por exemplo, de narração voice over. Em geral, esse recurso denota preguiça do roteirista, no caso de “A vida invisível”, todavia, há encaixe perfeito com a narrativa, principalmente considerando que a primeira (a narração) tem função dentro da segunda (a narrativa) – as cartas, além de servirem como engrenagem narrativa, são responsáveis por uma das cenas de maior intensidade.
O envolvimento de Filó na trama principal merece uma menção à parte: embora ela pareça uma personagem periférica, sua importância acaba sendo enorme, revelando uma engenhosidade notável no roteiro. Entretanto, como esse elemento é de conhecimento prévio do espectador, ele acaba minando a punch scene (a que Eurídice finalmente descobre o que o pai escondeu dela): seria muito mais interessante, em um primeiro momento, ocultá-lo do público, para que este, juntamente com as personagens, tenham uma surpresa. Da maneira como está no filme, o vigor da cena é reduzido, não tendo a dramaticidade desejável.
Assim, o roteiro é bom, mas comete alguns deslizes. Também servem de exemplo o detetive particular incompetente e a coincidência da cena do restaurante. Entretanto, para esses deslizes há satisfatórias compensações – no caso da cena do restaurante, um simples movimento panorâmico com a câmera, de Guida até seu pai, é capaz de gerar impacto dramático. Nesse caso, o mérito vai para Karim Aïnouz, que dirige bem a película. Em termos de enquadramento e simbolismos, o nível da direção é alto, como no prólogo e no epílogo – no primeiro caso, contudo, a função narrativa é bem questionável.
Com inteligência, o diretor destaca a exígua (quantitativamente), porém vultosa (qualitativamente), presença de Fernanda Montenegro. O elenco jovem não decepciona, mas a força com que a veterana atriz domina a telona é simplesmente avassaladora (e ela é vista em praticamente todos os planos a partir do momento em que entra em cena). Imponente, é com ela que o filme consegue os melhores momentos de emoção – necessário apontar, contudo, que o êxito se deve muito mais à atriz do que ao roteiro em si, que não é dos dramas mais impactantes.
Tecnicamente, “A vida invisível” é quase impecável. O design de produção é coerente com a época, a fotografia é excelente (o filtro retira a saturação e simboliza o período) e a trilha musical é dotada de nuances de lirismo coesas com a narrativa. O filme não tem um enredo capaz de alcançar fortes emoções – não tem aquele plot twist sensacional, aquela cena inesquecível ou aquela ideia fenomenal -, mas estimula a reflexão sobre machismo dentro de uma boa história. Se não reverbera tanto no coração, o faz na mente.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.