“A TORRE NEGRA” – Referências desaconselhadas
Sempre que um filme tem sua origem em um material literário ressurge a seguinte questão: a adaptação precisa se comunicar com o público que já conhecia a obra original ou deve atingir qualquer pessoa que a assistirá independentemente do conhecimento prévio? A TORRE NEGRA consegue a proeza de desagradar aos dois perfis de espectadores ao tentar levar para o cinema o mais extenso trabalho do escritor Stephen King. Ao invés de se sustentar com uma autonomia própria, o projeto continuamente remete às origens como não deveria.
Baseando-se na coleção homônima composta por sete livros principais, a produção dirigida por Nikolaj Arcel se inicia a partir do garoto Jake Chambers. Ele sonha e desenha imagens muito vívidas sobre um mundo fantástico que abriga a Torre Negra, construção poderosa que sustenta o universo, mas está prestes a ruir. Isso porque o Homem de Preto pretende derrubá-la, apesar dos esforços do pistoleiro Roland Deschain para protegê-la. Acreditando que nada daquilo seria imaginário, Jake mergulha em uma trama com passagens entre diferentes dimensões e uma magia desconhecida.
Considerando-se a extensão dos livros, a quantidade de personagens e o estilo prolixo de Stephen King, é natural pensar que a adaptação precise fazer escolhas do que retratar. Nesse sentido, o roteiro escrito por Akiva Goldsman, Jeff Pinker, Anders Thomas Jensen e pelo próprio cineasta limita a Jake o papel de seguir e ajudar Roland, deixando outras figuras e núcleos de lado. Não seria uma opção ruim se o primeiro ato em torno dos sonhos do garoto não fosse tão genérico e inconstante: jovens que possuem poderes especiais e são tidos como loucos ou problemáticos já foram representados antes com mais personalidade; a revelação dos sonhos ou das visões incomuns já foi trabalhada com um efeito dramático maior em outras narrativas; e a dualidade entre real e imaginário poderia render frutos se não fosse abandonada em favor de uma abordagem tão explícita e didática.
Da mesma maneira, é necessário condensar um universo desenvolvido em sete livros se a proposta é criar um único filme. Entretanto, fazer isso ao longo de pouco mais de uma hora e meia se revela uma tarefa caótica, especialmente quando o produto é a complexa criação do escritor – ele uniu seu estilo clássico de suspense/terror sobrenatural com raízes em conflitos mundanos à fantasia típica de “O senhor dos anéis” e às histórias de faroeste. A execução de Nikolaj Arcel, portanto, acaba sendo uma confusão de referências que servem apenas para os fãs da literatura (o número dezenove e o rei Rubro); uma mistura incoerente entre magia e tecnologia jamais contextualizada; citações apressadas de outros eventos daquele mundo mágico (as tragédias na vida do pistoleiro); e o subaproveitamento do design de produção de Christopher Glass, em teoria, capaz de evocar a grandiosidade do que está em jogo se não fosse sabotada por poucos planos gerais que enquadrem o ambiente e por cenas extremamente escuras.
A tentativa de se tornar uma produção autônoma também sugere ser necessário acompanhar personagens de pouco apelo emocional ou, no caso do vilão, de forte teor caricatural. O protagonista Jake não foge muito do arquétipo suscitado pela jornada do herói, acrescido do fato de que serve como guia para o espectador compreender o alcance do mundo fantasioso – porém, nem o luto pela perda do pai faz com que o ator Tom Taylor desperte alguma empatia, dado o aspecto genérico de seu personagem. O pistoleiro Roland até possui um conflito interior promissor, marcado pelo heroísmo típico de sua linhagem na proteção à torre em contrate com o desejo de vingança decorrente do assassinato do pai, mas Idris Elba não parece estar à vontade no papel e apenas recita suas falas roboticamente. Já o Homem de Preto é reduzido a um clichê pobre de vilão de desenho animado, disposto a demonstrar maldade nas situações mais infantilizadas e a usar suas habilidades das formas menos criativas possíveis – a composição de Matthew McConaughey como um chefe cheio de capangas incompetentes, uma voz sedutora e o sobretudo aberto na altura do peio também comprometem.
Cada equívoco na direção de atores e na conformação de uma trama possível para o cinema repercute na construção de universo. Parcela do público que não registra os easter eggs (mesmo quem consegue não vê nada muito diferente de artifícios arremessados a esmo na tela) também não consegue compreender o desenrolar da narrativa, a entrada de novos personagens e as implicações das resoluções dramáticas. Essa incapacidade é fruto da colcha de retalhos da narrativa, habilidosa em confundir através da intercalação caótica de passagens de diferentes livros sem uma unidade dramatúrgica e estilística coerente. Logo, o envolvimento emocional é prejudicado por uma história perdida que salta de um ponto a outro pela montagem de Alan Edward Bell e Dan Zimmerman e por um clímax resolvido com uma luta decepcionante.
Diante de escolhas questionáveis, “A Torre Negra” em sua versão cinematográfica gera dúvidas quanto às estratégias da adaptação. Uma obra literária que já foi imaginada como franquia de filmes ou série televisiva ser condensada e simplificada em uma narrativa consideravelmente curta desencadeia problemas e limitações. Acima de tudo, levanta reflexões se a versão original teria também um enredo confuso, personagens caricaturais e uma jornada fantasiosa genérica. Para o filme, lembrarem o material literário dessa forma é prejudicial porque sairá em desvantagem sob quaisquer circunstâncias, afinal o resultado negativo coube à produção audiovisual.
Um resultado de todos os filmes que já viu.