“A SOCIEDADE LITERÁRIA E A TORTA DE CASCA DE BATATA” – Histórias bem contadas
A SOCIEDADE LITERÁRIA E A TORTA DE CASCA DE BATATA não revela muito em seu título longo, inusitado e, de certa forma, misterioso. O novo filme original Netflix prefere apresentar calmamente suas camadas de história, enquanto envolve o público e captura sua atenção e seu coração. E a experiência de descobrir e sentir todos os detalhes da narrativa e como eles se entrelaçam é o que torna o drama instigante e prazeroso de acompanhar (seja com um leve sorriso no rosto, seja com um marejar de olhos).
O roteiro acompanha a escritora Juliet Ashton na Londres de 1946 quando decide visitar a ilha Guernsey, no Canal da Mancha, invadida pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. A visita acontece após receber cartas de um fazendeiro do local, que relatam a criação de um clube literário durante a guerra. A trama, por mais que se concentre no tempo presente da narrativa, também precisa mostrar eventos, situações e personagens na época do conflito através de flashbacks. O recurso é utilizado moderadamente, sem cansar o espectador ou o próprio filme por um excesso de exposição, e é inserido em momentos adequados facilmente identificáveis – essa volta ao passado complementa a narrativa e surge a partir de alguma fala dos personagens, algo que se torna um padrão capaz de ser assimilado sem causar dúvidas do período em que cada sequência acontece.
Com a chegada de Juliet à ilha, o diretor Mike Newell eleva a qualidade do material ao saber trabalhar os diferentes tons da produção. Os contatos entre a protagonista e os membros do grupo de leituras são ternos, delicados e amorosos (com distintas acepções de amor), porém não apagam as passagens dramáticas e trágicas relativas à ocupação nazista. O cineasta consegue dosar sentimentos positivos das interações entre os personagens com a exibição das violências praticadas em tempos de guerra: a brutalidade do exército nazista, a escravização de presos sob controle dos alemães, prisões e desaparecimentos de pessoas resistentes aos invasores e famílias desfeitas – cada uma dessas violações é construída de modo a demonstrar que as consequências de uma guerra são duradouras e afetam as pessoas de diferentes maneiras.
O discreto trabalho de câmera de Mike Newell também procura dar vazão à subtrama do valor da arte. Antes de desembocar nas “investigações” de Juliet sobre os impactos do nazismo naquela região, o cineasta leva um tempo desenvolvendo a ideia do poder da arte na transformação das vidas, independentemente de quais sejam e de onde estejam. A protagonista encontrou seu lugar no mundo ao escrever seus livros e os moradores de Guernsey enxergaram na literatura uma forma de resistência ao nazismo. Em última instância, a arte se torna o elemento de comunhão que aproxima e integra Juliet e os participantes do grupo literário.
A história, por vezes sombria, por vezes esperançosa, também é moldada por um excelente trabalho de recriação de época para a década de 1940. O design de produção feito por James Merifield contém salões de baile luxuosos e casas londrinas vitorianas, ainda sentindo a presença da guerra com construções em ruínas pelos bombardeios; e também concilia as paisagens paradisíacas de Guernsey com objetos fúnebres (como arames que demarcavam a existência de minas e explosivos). Integrados a esse aspectos, estão a fotografia de Zac Nicholson e o figurino de Charlotte Walter: filtros de luz escura são usados para os flashbacks da guerra, enquanto a luz solar natural recobre as sequências do tempo presente; roupas refinadas e de cores variadas transmitem o glamour e a ostentação dos centros artísticos de Londres, enquanto um vestuário simples, prático e de poucas cores indicam um modo de vida oposto ao da capital inglesa.
A variedade de temas abordados pela obra não seria possível sem um elenco, ao menos, homogeneamente qualificado. Os integrantes do clube literário oferecem sutilezas de personalidade e de trajetórias dramáticas graças a atores dedicados aos menores detalhes: Michiel Huisman, vivendo Dawsey, compõe um homem introspectivo por conta dos sofrimentos passados, que encontra seu refúgio nos livros; Katherine Parkinson, vivendo Isola, cria uma mulher solitária, mas ainda assim simpática e acolhedora; e Penelope Wilton, vivendo Amelia, e Tom Courtenay, vivendo Eben, são a encarnação da experiência e da dificuldade de se libertar das angústias vividas e revividas.
Porém, o centro dramático está na Juliet Ashton vivida por Lily James. A atriz atravessa diversas camadas em sua personagem com a mesma solidez: a sensibilidade artística de quem é movida pelo prazer de contar histórias, a empatia diante de pessoas já muito sofridas, a perseverança de correr atrás dos seus desejos e as incertezas de como guiar a própria vida. Esse último ponto é a base do arco da protagonista: um amadurecimento que envolve a escrita (quais são as histórias que precisam ser contadas e os significados que delas se retira), mas também as mudanças que deve experimentar para além do que acreditava ser seu lugar no mundo.
“A sociedade literária e a torta de casca de batata” é o exemplo de acerto que a Netflix procura para seu catálogo. Talvez seu título curioso desperte as primeiras atenções do espectador, porém depois disso vem sua maior virtude: uma história que exalta o que há de mais humano na arte de contar histórias. Nada mais cinematográfico do que isso.
Um resultado de todos os filmes que já viu.