“A SINDICALISTA” – Morno thriller político
A metamorfose entre a ficção e a realidade é bastante frequente no cinema. Não são poucos os acontecimentos verídicos que acabam nas grandes telas, liderados por personagens dignas de bons roteiros. Esse diálogo leva à valorização de diversos casos políticos, que tentam transpor a sua complexidade para a cinematografia. É desse intercâmbio que surge o francês A SINDICALISTA, que se baseia em escândalos da indústria nuclear.
Anos se tornar vítima de um tenebroso caso de estupro, a representante sindical Maureen Kearney se vê forçada a revisitar possíveis fatos que antecederam o crime. Líder sindical da Avera, uma notável empresa francesa, ela reflete a respeito da trajetória que a consolidou como uma representante de destaque, à frente na defesa dos direitos das mulheres empregadas pela companhia. Esse processo inicia a descoberta de segredos ainda mais obscuros.
Sem medo da associação aos aspectos do suspense, não demora para que a direção de
Jean-Paul Salomé invista em uma atmosfera densa, se permitindo flertar com uma mescla entre a dramaturgia e o tecido verídico que impulsiona a obra. Isso confere um dinamismo nem sempre encontrado nessa esfera do cinema político, que subverte a paleta fria tradicional em uma narrativa de forte fluidez.
Um dos principais fatores para esse aspecto se dá na montagem, que bem oscila entre o passado e presente enfrentado pela protagonista. Inicialmente nítida, ela destaca a ascensão gradual da figura de Isabelle Huppert, exímia atriz que entrega outra grande atuação. Partindo do testemunho da desigualdade e dos maus tratos conferidos às mulheres, que responde pela interiorização de seus instintos mais revoltosos, ela entrega um arco de expansão que borra os seus limites entre a individualidade e o coletivo.
A lógica dessa performance acaba interferindo na estruturação da narrativa, intensificada pelo retorno ao momento da violentação sexual, e que amplia a colocação da personagem como representante social na maneira como mergulha em suas particularidades mais densas. Sua dissolução através de todas aquelas por quem se coloca entra em contraste com a uma vulnerabilidade bastante palpável, muito explorada através do corpo.
Conforme os instrumentos de coerção de Avera se intensificam, em confluência com um acréscimo da atenção ao psicológico de Maureen, chama a atenção como a produção embaralha alguns códigos morais, forçando-a a se colocar como o verdadeiro alvo dassignificação do status da empresa denunciada. Ela se vê obrigada a compreender melhor o modos operanti daqueles que objetiva desarmar, consequentemente se colocando em um risco gradativamente maior.
Isso acelera o ritmo do filme, que começa a se tornar mais enérgico na maneira de compor as suas imagens. Dos planos mais fechados que valorizam microexpressões de Huppert aos quadros que incorporam a arquitetura ofuscante dos corredores empresariais, é como se a personagem afundasse cada vez mais nas margens entre a sua essência e a ilustração. Transformada em mártir, ela precisa traduzir as suas sequelas em fontes para a sua força, tomada cada vez mais pela magnitude do que representa e abandonando o plano individual.
Embora essa relação dicotômica seja interessante, nem sempre é natural a relação da mesma com o grande discurso social da obra. Ainda que necessário, seu didatismo não deixa de atravessar essa relação ambígua da protagonista, mas nem por isso reduz o que se mostra ser um diferente thriller político.
Consciente do enorme peso que alguns de seus disparadores trazem consigo, “A sindicalista” é uma interessante maneira de se explorar o estabelecimento de ícones revestidos por um realismo político. Tratando a sua protagonista com uma necessária complexidade, mas que jamais abdica de denunciar necessárias mazelas na dissociação entre a dominância masculina e a submissão feminina, o filme brilha mesmo em caminhos seguros, que em nada diminuem o grande alcance da história em que se inspira.
* Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.