“A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO” – Microcosmos de isolamento e intolerância
Intencionalmente ou não, A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO opera em torno de microcosmos e escalas variadas que se interconectam. O regime fundamentalista islâmico do Irã, os personagens do filme e a equipe de profissionais da produção se atravessam constantemente. A dura repressão aos protestos populares contra a teocracia do país, a trama sobre uma família afetada pelas condições políticas da conjuntura e as perseguições do governo iraniano ao diretor Mohammad Rasoulof e aos demais envolvidos sob a acusação de ameaça à segurança nacional constituem a narrativa e sua trajetória.
No Irã, setores sociais se manifestam contra o governo teocrático da ala radical do Islã. A turbulência se intensifica após o assassinato de uma jovem. Nesse contexto, Iman é promovido a juiz de instrução e trabalha no combate aos manifestantes. As pressões do trabalho e a dedicação ao regime fazem com que o homem entre em um quadro de vigilância e desconfiança extremo, capaz de desestabilizar a própria família. A situação piora quando ele perde sua arma, o que deixa a esposa Najmeh e as filhas Rezvan e Sana sob forte tensão e perigo.
A família em questão se torna o primeiro microcosmo para a situação política do Irã. A trama se baseia em dois conflitos principais para criar o paralelo entre as escalas familiar e nacional, sendo eles o desaparecimento da arma do pai e a agressão sofrida pela amiga de Rezvan. A narrativa parte dos dois eventos para discorrer a respeito de temas relativos à crise no país: a exigência moral e religiosa da vestimenta adequada para as mulheres, a justificativa de atos brutais por meio da vontade de Alá, a criminalização dos protestos como sinônimo de vandalismo contra a ordem social, a suposta deturpação da verdade por meios de comunicação oposicionistas e a violenta hierarquização da sociedade através da obediência absoluta às autoridades. Tudo é trabalhado com o cuidado de não parecer um discurso esquemático ou didático em demasia. Na realidade, os embates ocorrem por conta das diferenças geracionais entre pais tradicionalistas e filhos com outra mentalidade.
Mohammad Rasoulof transita muito bem entre as duas escalas, conseguindo dar conta também das fronteiras entre uma linguagem ficcional e a dimensão real dos acontecimentos. Para isso, ele incorpora à narrativa cinematográfica os vídeos publicados em redes sociais. Os manifestantes filmaram com seus celulares a brutalidade policial para denunciá-la e o público pode assistir às gravações no formato vertical típico das plataformas digitais. O filme alterna entre registros da ficção e da realidade, por exemplo quando as filhas veem filmagens dos protestos compartilhadas em seus celulares e as imagens reais nas ruas do país são exibidas. É interessante também notar como a questão da gravação aparece em outros momentos expressivos. Em uma das filmagens de manifestantes, um policial atira contra um dos revoltosos e seu celular, o que interdita o direto à livre expressão da sociedade. Por outro lado, filmar as confissões de prisioneiros mediante interrogatório é essencial para reafirmar os valores aceitos pelo regime, algo que leva Iman a fazer o mesmo com as filhas para reaver a arma desaparecida.
Em outras passagens, o cineasta estiliza com mais intensidade os problemas que cercam a família. Então, a construção ficcional varia entre uma linguagem clássica que não chame a atenção para si e outra decupagem formalista que ressalte as escolhas criativas da direção. É o que ocorre na contraposição entre sequências mais ou menos silenciosas que ajudam a retratar dúvidas e angústias dos personagens conforme as complicações se acentuam. O silêncio dá o tom das situações nas quais o pai está em dilema com a violência do novo cargo, já algumas canções da cultura islâmica reforçam o peso das influências do governo sobre os conflitos familiares. Além disso, a tentativa de localizar o paradeiro da arma para evitar punições e identificar o responsável pelo desaparecimento produz momentos tensos de interrogatório graças a elementos cênicos (a venda nos olhos), à ausência de trilha sonora (exceto por ruídos diegéticos pontuais) e movimentos de câmera expressivos em torno da perspectiva subjetiva dos personagens.
O encadeamento dado por Mohammad Rasoulof à trama evoca outros paralelos que transbordam a diegese. Na visão de Iman e Najmeh, o mundo exterior ao apartamento é perigoso para Rezvan e Sana devido aos protestos. Por isso, elas precisam ficar em casa pelo maior tempo possível, inclusive não indo mais para a escola e universidade. Sendo assim, as sequências são muito mais filmadas em locações internas, como a própria residência e o local do trabalho do pai. A saída do apartamento é rara até o segundo ato e se resume a momentos transcorridos dentro do carro e ou caminhadas rápidas pela rua até chegar a um cenário fechado. Em outros instantes, o contato com o mundo exterior é feito apenas pelo celular ou pela janela. Como consequência, a sensação de isolamento e de claustrofobia atinge a família. Essa condição pode ser ampliada para para a equipe do filme, afinal a temática e a abordagem crítica à teocracia iraniana desagradaram os governantes, que passaram a perseguir os profissionais. O diretor precisou fugir do país e, segundo seus relatos, companheiros da equipe e familiares foram ameaçados. A obra foi, então, inscrita para concorrer ao Oscar de 2025 pela Alemanha, um dos países que participou em coprodução.
Progressivamente, a tensão familiar cresce. De início, tem relação com os cuidados crescentes que todos devem ter em nome da imagem profissional e moral do pai. Em seguida, relaciona-se com a presença de uma amiga de Rezvan na casa. Os problemas aumentam com a perda do revólver e se intensificam a partir dos desentendimentos entre a filha mais velha e o pai. Novamente, a narrativa se aproveita desse microcosmo para tratá-lo como metáfora para a situação geral do Irã. Os impactos de todos os eventos sobre Iman fazem com que ele perca o controle e se comporte com os familiares de maneira semelhante à sua postura no trabalho com os opositores políticos presos. Os espectadores podem ver os conflitos travados na sociedade como um todo em uma escala reduzida naquela família. Iman precisa buscar um culpado para tudo que aconteceu, mesmo que seja imaginário. A paranoia toma conta dele e qualquer pessoa próxima em atitude aparentemente estranha desperta suspeita e temor. Todos devem se esconder da perseguição de manifestantes ou de punições do governo e fogem. O pai trata a esposa e a filha como prisioneiras a serem interrogadas e elas se desesperam diante dos riscos.
No cenário desenvolvido em “A semente do fruto sagrado“, não é factível esperar uma resolução feliz ou, no mínimo, encontrar um acordo satisfatório para todos. Os laços familiares são submetidos a embates destrutivos, a violência de Iman possui uma dimensão de gênero significativa em face das condições dolorosas aplicadas à esposa e às duas filhas e o tom dramático ao final se estabelece com intensidade. Os desenvolvimento da trama e dos arcos dos personagens reafirmam mais uma vez que o microcosmo familiar é trabalhado em diferentes escalas para criticar a brutalidade do regime contra a mobilização de manifestantes em luta por liberdade, democracia e igualdade. As escalas podem ser amplas e reais com os registros das manifestações, mais reduzidas e ficcionais dentro da trama em torno de Iman, Najmeh, Rezvan e Sana, e artisticamente indesejadas devido às perseguições de artistas em seu direito de expressão cultural e ação política.
Um resultado de todos os filmes que já viu.