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“A QUÍMICA QUE HÁ ENTRE NÓS” – Kintsukuroi

Mais interessante que a explicação química do funcionamento humano (no cérebro, por exemplo), A QUÍMICA ENTRE NÓS encanta ao tratar do processo de cicatrização, simbolizado pela kintsukuroi. Trata-se da arte japonesa pela qual se repara um objeto de cerâmica quebrado, usando ouro e laca para reunir novamente as peças.

Henry está no último ano do colegial e pretende começar sua jornada profissional como editor-chefe do jornal da escola. Grace, uma aluna nova, é colocada para dividir a função com ele. A garota, porém, não tem interesse na atividade, aceitando ser sua assistente, desde que não precise escrever nada. Com Grace, Henry tem uma nova perspectiva da vida como então ele conhecia.

Amazon Prime Video / Divulgação)

Antes de ser um romance, “A química entre nós” é um coming of age preocupado em mostrar como os adolescentes lidam com experiências dolorosas, superando-as ou sucumbindo diante delas. Henry é ao mesmo tempo comum e extraordinário. Ele é comum porque tenta impressionar a garota por quem se interessa (ao mencionar um poeta chileno cujo nome parece não saber direito, o que indica que não conhece sua poesia bem, mas a referência serve para chamar a atenção) e porque gasta muitos minutos pesquisando sobre ela nas redes sociais e cogitando mandar uma mensagem para ela.

Entretanto, Henry é também extraordinário, não apenas pelo interesse em escrever, o que lhe dá um perfil nerd, mas principalmente pelo encanto na kintsukoroi. Ele é a personagem principal do filme, mas Grace é a protagonista da estória: como uma peça de cerâmica prestes a ser consertada com ouro e laca, ela passou por um trauma profundo do qual não se recuperou. É esse trauma que a impede de escrever e dirigir, atividades que fazem com que se lembre do sofrimento. Tudo isso também serve para o arquétipo da aluna nova enigmática, o que é reforçado pelos fones de ouvido que ela usa nas reuniões do jornal (criando uma barreira simbólica para não socializar com os colegas), pelo passeio exótico para o qual convida Henry (o mero fato de convidá-lo é uma mudança em relação ao que se espera no perfil de garota cujo interesse precisa ser ocultado) e mesmo por falas vagas (“pecados para apagar”). O ponto de vista é sempre de Henry, mas tudo gira em torno de Grace.

Em razão disso, o filme funcionaria melhor se Lili Reinhart fosse melhor atriz. Austin Abrams tem a mesma idade que ela e é benéfico para o longa que ele pareça mais novo, pois Henry é de fato muito mais pueril que Grace. Um primeiro choque entre eles decorre justamente do fato de estarem em realidades diferentes; ela se sente mais adulta porque teve experiências mais adultas. Quando ela “explode” ao sair da casa dele, o diretor Richard Tanne acerta no uso de câmera na mão, demonstrando o descontrole da garota naquele momento, ou uma certa instabilidade. Igualmente, quando ele usa panorâmica na cena em que Henry manda mensagem de voz para Grace, deslocando-se de um lado a outro da sacada de sua casa, o que fica subentendido é que, mesmo se movendo, ele não sai do lugar – o que é verdade, pois a transformação proposta pelo roteiro de Tanne (baseado no livro de Krystal Sutherland) é imposta apenas a Grace. É por isso que Reinhart não foi a melhor escolha para o papel (no drama, elemento chave de seu arco narrativo, ela é extremamente artificial).

O texto tem momentos de brilhantismo, como a conversa entre duas amigas de Henry sobre a desimportância de rótulos no campo da orientação sexual. Assim como Grace, elas são muito mais cativantes que Henry. O design de produção adota a cor azul para representá-lo (seu vestuário, sua roupa de cama, as paredes e as cortinas de seu quarto etc.) porque ele ainda é o adolescente cujos hormônios – parcela da química a que alude o título – são manifestações efervescentes da idade. Grace começa com um figurino de cores escuras e/ou frias (castanho, preto, cinza etc.) e com muitos casacos, tudo indicando sua postura retraída perante o mundo. Na mise en scène, uma sequência de montagem elíptica revela sua maior abertura ao tato (tirando um cílio do rosto de Henry, por exemplo) e a cena de sua revelação apenas não é melhor porque despida de uma música significativa.

São três as ideias da kintsukuroi aplicáveis ao filme. A primeira é que o resultado não é nem pode ser idêntico ao que o artefato era antes (após a quebra, a peça de cerâmica jamais será a mesma); a segunda é que o conserto embeleza o objeto (afinal, o reparo é feito com ouro); a terceira é que a beleza está justamente na singularidade dos traços da quebra (preenchidos com o ouro). O que era um simples objeto de cerâmica se torna uma peça de arte única; não melhor, nem pior, mas restaurada, cuja quebra é ressignificada como superação.