A QUIETUDE – Novela mexicana sim, gourmetizada também [42 MICSP]
Qualquer família tem segredos. Alguns deles acabam sendo ocultados por seus integrantes o máximo possível. E algumas famílias constroem um castelo de cartas apenas de segredos. Quando esse castelo desmorona, não sobra uma peça. É no desmoronamento que se pauta A QUIETUDE, filme argentino que mais parece um compacto de uma novela mexicana gourmetizada.
“La Quietud” (no original) é a fazenda de uma família abastada onde mora o casal Augusto e Esmeralda, além da sua filha Mia. Quando a outra filha, Eugenia, retorna de Paris, os ressentimentos do passado mostram que não foram resolvidos, abalando o relacionamento de todos eles e de quem os cerca.
De fato, feridas não cicatrizadas voltam a arder com facilidade. Pablo Trapero escolheu bem o título para a fazenda (e o título do longa que dirigiu, roteirizou, montou e produziu): o estado de quietude pode ter diversas razões, quando ele significa a poeira colocada embaixo do tapete, é alta a probabilidade de ela retornar. De maneira crescente, a trama expõe esse drama que não fica apenas na potencialidade, mas tem consequências severas.
No primeiro ato, aparentemente, Eugenia e Mia se dão bem até demais – a cena de erotismo soa como um bait por ser a única de teor homoafetivo, sem olvidar a espinhosa questão do incesto, o problema maior é que ela não tem maiores consequências narrativas, o que reforça a tese de que o objetivo era apenas impressionar -, porém não tarda para ficar claro que existem assuntos mal resolvidos entre elas. Quando Eugenia anuncia uma novidade que a alegra, Mia visivelmente não se empolga, o que somente faz sentido quando aparece Vincent, que é figura importante na família. Antes de Vincent, é Esteban quem entra em cena, levando o espectador a conclusões precipitadas.
Essa aparente confusão é proposital, mas tudo fica claro com o desenrolar da trama. É justamente isso que dá o tom novelesco à película, em um estilo mexicano, é verdade – misturando inveja, ciúme e mágoa -, porém gourmetizado em razão da direção de Trapero. O plano-sequência do prólogo e o excelente uso da trilha musical são elementos que permitem concluir que, conduzido por um cineasta mais modesto, o longa teria qualidade bem inferior. Não que a direção seja impecável (a luz branca quando a energia acaba é erro indesculpável na fotografia), mas é bastante satisfatória.
Quanto à trilha musical, o filme usa as canções inteiras em sequências longas, aproveitando todo o seu potencial dramático. Embora isso esvazie, na prática, a função narrativa das músicas, serve bem para emocionar o espectador, sobretudo pela sua beleza – em especial “People”, de Aretha Franklin, e “Amor completo”, de Mon Laferte. No caso de “Le rempart”, de Vanessa Paradis, há uma combinação perfeita entre a língua francesa e o ritmo (no sentido musical) argentino, o que se harmoniza com a película, que também faz essa mescla.
No elenco está Édgar Ramírez, em um dos piores papéis da sua carreira recente. O ator não está mal, todavia causa estranheza alguém com a sua experiência tão subutilizado como figura coadjuvante. Em tese, os holofotes ficariam com Bérénice Bejo e Martina Gusman, já que vivem os papéis principais (Eugenia e Mia, respectivamente). Entretanto, quem brilha é a Esmeralda de Graciela Borges, cuja interpretação intensa rende, sem dúvida, os melhores momentos do longa. Seja mediante a acidez do discurso – a cena em que a matriarca discute com Mia por uma bobagem (a data de certo acontecimento) é de impressionar -, seja pela força do silêncio eloquente – na cena em que toca “People”, a atuação de Borges é fenomenal -, a atriz é simplesmente fascinante. No caso do último exemplo, é interessante notar que Trapero não a filma por close, o que seria clichê pelo teor da cena, dando maior liberdade cênica à atriz.
Se “A quietude” não fosse um filme maniqueísta com a dupla principal (inclusive do ponto de vista imagético, basta verificar as tatuagens no pulso das duas irmãs) e se não guardasse tantas surpresas para o seu desfecho – o que torna o segundo ato um pouco arrastado -, o resultado da produção poderia ser melhor. Apenas a título exemplificativo, a fotografia tinha potencial para ser bem explorada, afinal, o cenário principal é uma fazenda. A preocupação, porém, acaba sendo exclusivamente nos meandros de uma família traumatizada de maneira rocambolesca. Nesse viés, Trapero acertou muito mais em “O clã”.
*Filme assistido durante a cobertura da 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.