“A PÉ ELE NÃO VAI LONGE” – Quando a técnica compromete o conteúdo [20 F. Rio]
Gus Van Sant é um diretor irregular. Os acertos de sua carreira produzem filmes de grande reconhecimento (“Elefante” e “Milk: A voz da igualdade”, por exemplo), já os erros são muito acentuados e inacreditáveis para alguém de sua posição em Hollywood (“Inquietos” e “The sea of trees”) . Seu mais recente trabalho, A PÉ ELE NÃO VAI LONGE, se encaixa no segundo conjunto de filmes, apesar de a premissa ser promissora.
A história conta os eventos reais da vida de John Callahan, uma famoso cartunista norte-americano produtor de imagens irônicas sobre racismo, sexualidade e sobre si próprio. Ele sofreu durante muito tempo com o alcoolismo e, devido à embriaguez constante, se envolve num acidente que o deixa paraplégico. A partir daí, precisa lidar com o vício e sua nova condição física, até descobrir a arte pela qual ficou conhecido.
A trajetória do protagonista desperta a atenção e oferece reflexões sobre a questão de reconstruir uma vida aparentemente destruída. A complexidade narrativa escolhida para entregar esse recorte da biografia de John Callahan, no entanto, mais atrapalha do que enriquece o conteúdo: muitas linhas temporais diferentes são construídas (antes do acidente, logo depois dele, ainda com o vício do alcoolismo, tempos depois quando entra para o “Alcoólicos Anônimos” e no futuro quando dá uma palestra já como cartunista) e mal interligadas entre si. É um excesso narrativo mal trabalhado, já que tais linhas não são bem amarradas nem finalizadas (algumas ficam em suspenso, desaparecem por algum tempo e retornam repentinamente sem propósito).
A estrutura narrativa também prejudica o desenvolvimento dos danos relativos ao álcool e à paralisia corporal. É difícil compreender todo o arco dramático envolvendo o enfrentamento dos dois problemas, a jornada de aceitação e aprendizado com eles e a melhoria através dos cartuns. A montagem feita pelo próprio cineasta e por David Marks possui alguns momentos interessantes esteticamente (como o efeito de transição de cenas e passagem de tempo através de movimentos horizontais ou verticais das imagens, sem cortes), mas, em geral, repete situações e conflitos desnecessariamente. Falta, portanto, foco ao filme para conseguir conectar os vários elementos da vida do protagonista e mostrar com clareza o que provocou suas transformações.
Além disso, a atuação de Joaquin Phoenix é outro aspecto dificultado pelas linhas temporais. O ator vem demonstrando seu talento atualmente com personagens muito distintos (a título de exemplo, “Você nunca esteve realmente aqui” lançado em 2018), mas não consegue salvar o material confuso que tem em mãos. O trabalho corporal é digno de elogios por conta da dificuldade existente – estar boa parte da projeção numa cadeira de rodas, deixando os membros inferiores e superiores lânguidos e sem controle sobre eles. O mesmo não vale para a personalidade do personagem, confusa e variável a todo instante – em determinado momento, é bem humorada e adaptada à sua nova condição, já em outro, segundos depois, é instável, sofrida e pessimista.
Os demais integrantes do elenco, em geral, têm pouco tempo de tela e oportunidades de desenvolvimento. Jack Black é o amigo alcoólatra também envolvido no acidente, apresentado apenas com seu estilo de vida de excessos. Rooney Mara é totalmente desperdiçada ao interpretar a fisioterapeuta de John e com quem ele tem um romance – não possui um arco próprio nem personalidade definida, e ainda por cima fica esquecida por muito tempo no filme. O único um pouco privilegiado é Jonah Hill, como o terapeuta do grupo dos “Alcoólicos Anônimos”, extremamente humanizado como um sujeito simultaneamente duro e preocupado com seus apadrinhados na luta contra o álcool (o alcance dramático do ator, seu figurino de estilo hippie e um corte de cabelo longuíssimo o ajudam a criar um personagem ímpar em sua carreira).
A opção narrativa que se comprova mais qualificada é a integração entre comédia e drama, ainda que vista em momentos muito específicos. Quando os cartuns de John são inseridos para fazer comentários irônicos sobre a narrativa, a produção sobe de nível por tornar a visão de mundo e os trabalhos do protagonista orgânicos na trama (a animação de traços simples feitos a lápis também é um ponto visualmente eficiente). Quando a “dramédia” é estabelecida pelo roteiro através de situações do cotidiano do personagem, o resultado é estranho, porque alterna bruscamente entre os dois gêneros.
Tendo uma duração mais longa do que o necessário, “A pé ele não vai longe” se torna um filme sentimentalista demais, incompatível com o personagem irreverente e transgressor que se vê em seus desenhos. O sentimentalismo dramático em abundância de Gus Van Sant compromete a identificação plena com o personagem e um maior conhecimento de sua carreira como cartunista. E esse último ponto faz muita falta.
Um resultado de todos os filmes que já viu.
*Filme assistido durante a cobertura da 20ª edição do Festival do Rio (20th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).