A ODISSEIA DOS TONTOS – Uma ode ao anarquismo… só que não [43 MICSP]
“Gil” (no plural, “giles”) é a palavra que, em espanhol, designa uma pessoa idiota, boba, estúpida. Na tradução para o Brasil, “La odisea de los giles” ficou como A ODISSEIA DOS TONTOS. Nos primeiros minutos do filme, é explicado o significado de tonto – é aquela pessoa ingênua, inofensiva, limitada e fácil de ser enganada.
A “odisseia” vivida pelos “tontos” se refere à reação do grupo – pessoas simples que, no interior da Argentina, se uniram para criar uma cooperativa – contra uma artimanha da qual eles foram vítimas. A crise econômica do período (2001 em diante) já seria suficiente para revoltá-los, mas o golpe contra eles, que tinham ambições modestas, foi a gota d’água. Justiça ou vingança, hora de reagir.
A produção é um híbrido entre comédia e heist movie. Estruturalmente, o roteiro de Sebastián Borensztein e Eduardo Sacheri (este, autor da obra original) tem uma trama original como fio condutor, abraçando um clássico (“Como roubar um milhão de dólares”) no meio. De maneira mais precisa, o plot é econômico, justificando o contexto argentino do começo dos anos 2000, período em que a história de passa. Ideologicamente, é controversa a ideia de justiça com as próprias mãos, mas a comédia fornece uma margem de liberdade nesse sentido.
O humor existe nas minúcias, atenuando bastante o lado criminoso da narrativa principal. A graça é baseada, na maioria das vezes, na estupidez das personagens – como quando Medina (Carlos Belloso) tenta se disfarçar pintando o rosto -, com eventuais piadas mais inteligentes – como em relação ao peronismo. No primeiro caso, não é um humor “pastelão” ou exagerado, mas leve e inocente. Não chega ao nível escrachado. O grande exemplo é Rodrigo, interpretado por Chino Darín, que é manifestamente inábil para a tarefa que lhe é atribuída. No humor inteligente, o destaque é Luis Brandoni como Antonio Fontana, um mecânico que se autointitula um anarquista, o que enseja piadas com Bakunin.
Como núcleo narrativo está Fermín Perlassi, vivido pelo sempre irretocável Ricardo Darín. Para deixar claro que ele é o líder, colocam Fermín como herói de um time de futebol pequeno, o que é coerente com a posição que ocupa posteriormente, já que todos do grupo o respeitam e o enxergam como norte. Praticamente o filme inteiro é visto pelo seu ponto de vista, incluindo narração voice over – no caso desse script, o recurso narrativo não representa preguiça, mas uma ferramenta de didática (em termos de contextualização) e impressão de subjetividade, à trama, pela personagem principal. Como se não bastasse, Fermín tem o arco dramático mais complexo (enquanto que o roteiro deixa a desejar no que tange às coadjuvantes), o que faz todo sentido em se tratando de Ricardo Darín.
É uma pena que o filho (Chino) não tenha demonstrado o mesmo talento dramático. Na comédia (gênero que é mais fácil para o ator, quando comparado com o drama), todavia, ele não compromete. O texto é embasado, como já mencionado, na conjuntura econômica argentina do período, porém há subtextos de relevo. Talvez o principal deles seja a relação entre pais e filhos: Fermín e Carmen subestimam seus filhos (respectivamente, Rodrigo e Hernán, este na pele de Marco Antonio Caponi) e os tratam como incapazes para quaisquer tarefas. Mas não, eles são apenas “giles”.
Se o roteiro faz de “A odisseia dos tontos” uma comédia vestida de heist movie, a direção de Borensztein cria cenas dignas de um faroeste, da música que evoca o melhor de Ennio Morricone ao tom épico da filmagem. A montagem de Alejandro Carrillo Penovi estimula o bom ritmo da trama, através de montagem paralela e sequências elípticas (nesse caso, com auxílio da narração voice over). A escolha de músicas de Federico Jusid é bem eclética, transitando entre o erudito (“The blue Danube“, de Strauss, “The skater’s waltz”, valsa de Émile Waldteufel que combina muito com a comédia) ao rock (“Cheques”, de Spinetta y los Socios del Desierto). Nos créditos, uma surpreendente versão de “No llores por mi, Argentina”, recriada por Serú Girán.
Pode ser que “A odisseia dos tontos” sirva apenas para os tontos, aqueles que percebem que sua postura inofensiva dá brecha para que outros deles se aproveitem. Embora seja uma história de revolução e luta na perspectiva ideológica, parece muito mais um conto divertido e alegre para fins de entretenimento honesto do que um convite à anarquia (conceito inclusive ironizado pela obra). É tudo “una tontería, nada más”.
Aviso: o filme conta com uma cena durante os créditos de encerramento.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
ERRATA: a valsa que toca no filme é “The blue Danube“, não “The skater’s waltz“, conforme constante na trilha oficial do filme. Como alertou o amigo Joba Tridente, trata-se de uma referência a “2001 – uma odisséia no espaço”. Obrigado, Joba!
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.