“A NOITE DEVOROU O MUNDO” [FVCF/2018] – Uma ode à solidão
Embora possa parecer, A NOITE DEVOROU O MUNDO não é apenas mais um filme de apocalipse zumbi. Não é uma versão em miniatura de “The walking dead”. Após uma noite de festa, o protagonista Sam acorda completamente sozinho. Na verdade, ele não está sozinho na cidade: todas as outras pessoas se tornaram zumbis sedentos de sangue. Com o passar do tempo, ele entende que precisa adotar estratégias de sobrevivência, na esperança de eventualmente não ser o único vivo.
Distante de qualquer clichê do subgênero, trata-se de um filme integralmente simbólico. Sam dorme por acidente e tarda para entender que, para sobreviver, precisa se prevenir contra os riscos, planejar a subsistência e ocupar o próprio tempo. A caminhada pela sobrevivência é mesmo solitária. A vida pode não ser cruel a ponto de obrigar as pessoas a enfrentarem zumbis, mas tem sim suas intempéries. Algumas interferências externas, positivas ou negativas, podem aparecer, mas a sobrevivência depende de si. Em uma sociedade cada vez mais ególatra, com pessoas dispostas a se aproveitar umas das outras como verdadeiras sanguessugas, cabe a cada um traçar um planejamento para permanecer vivo – no sentido mais amplo possível.
Anders Danielsen Lie tem uma tarefa difícil de sustentar o filme quase sozinho. Sam passa por uma transformação física – possivelmente o já magro ator perdeu peso para o papel, como se vê no plano-detalhe da sua (ausência de) barriga -, o que se explica pelo contexto desfavorável em que passa a viver. Sem a barba e com maquiagem de palidez, sua vulnerabilidade é estampada e comparada à paradoxal vividez dos zumbis. São os outros da sociedade, os opressores, que, mesmo indiretamente, praticam violência contra o indivíduo. Eventualmente, pode aparecer alguém não tão ruim: Sam encontra em Alfred – interpretado pelo espetacular Denis Lavant (sua expressão corporal no papel é brilhante) – quase um amigo.
A película exige uma mixagem de som que não decepciona, embora pudesse ter sido usada com muito mais intensidade. A expectativa gerada no prólogo, por exemplo, que mescla uma música de suspense e ruídos enigmáticos para o protagonista, não é perene no longa. Qualquer barulho se torna suspeito, mas isso não é explorado como poderia (uma trilha musical mais presente ajudaria, por exemplo). As maquiagens são bem feitas, assim como também é bom o desempenho dos intérpretes dos zumbis, que hoje têm bastante material de apoio no audiovisual – são zumbis irracionais e animalescos (chegam a lutar contra grades), mas não inertes (o que os torna perigosos). Com inteligência, a fotografia aproveita a escassez de luz dos cenários: o longa é filmado em poucos ambientes abertos, simulando utilizar apenas luz natural que adentra nos recintos pela janela, o que, por via de consequência, aumenta a tensão (nem tudo fica claro, literalmente). A cenografia de um lar abandonado e bagunçado é a representação imagética da vida solitária do protagonista.
O diretor Dominique Rocher (corroteirista, juntamente com Jérémie Guez) não faz um filme banal de zumbis: ainda que mostre a carnificina, o faz com naturalidade, sem sensacionalismo (sem ser esse o foco); mesmo tendo ação (em especial na sequência final), definitivamente não é esse o foco (não é em nada parecido com o sul-coreano “Invasão zumbi”). A tensão existe, pois os zumbis estão sempre na iminência de aparecer, porém não há uso de jump scares ou ferramentas desse tipo. Pelo contrário, o cineasta dá preferência a cenas lúdicas, como Sam improvisando instrumentos musicais para tocar, ou planos-sequência em que ele corre pelo apartamento onde está, ao som de “Buona sera signorina”.
“A noite devorou o mundo” tem uma visão dura da realidade hodierna, é um drama delicado cuja sensibilidade talvez não seja captada pelo espectador que procura mais um filme de apocalipse zumbi. É possível que o longa não encontre seu público com facilidade. Se fosse mais enfático e menos metafórico, facilitaria a reflexão que propõe.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.