“A NOITE DAS BRUXAS” – Agatha Christie não decepciona
A franquia Poirot de Kenneth Branagh chega ao seu terceiro episódio modificando bastante o seu estilo. Enquanto “Assassinato no expresso do oriente” é um whodunit pouco criativo do ponto de vista estilístico, “Morte no Nilo” é bastante suntuoso e não menos pretensioso. Em comum, elencos estelares. A NOITE DAS BRUXAS é o mais criativo, consideravelmente suntuoso e igualmente pretensioso, porém seu elenco é menos conhecido. Se Agatha Christie não decepciona, o mesmo não pode ser dito de Branagh, cuja obra repete equívocos pretéritos e incorre em novos.
Veneza, 1947. Hercule Poirot está agora aposentado e não quer contato com ninguém. Ariadne, uma autora de prestígio e sua amiga pessoal, lhe pede que vá a uma sessão espírita, o que ele, relutante, aceita. Quando um dos convidados é assassinato, o detetive precisa voltar à ativa antes que outras mortes ocorram.
Agatha Christie não decepciona porque mesmo um roteirista irregular como Michael Green consegue elaborar um script interessante (vale lembrar que são dele pérolas como “Lanterna Verde” e “Alien: Covenant”), no qual tudo se encaixa perfeitamente (não é à toa, por exemplo, que Maxime seja chef). Na sua terceira parceria com o diretor Kenneth Branagh nas adaptações da obra de Christie para o cinema, Green mais uma vez negligencia muitas personagens em termos de complexidade. Isso ocorre sobretudo com Rowena (Kelly Reilly), Ferrier (Jamie Dornan), Olga (Camille Cottin) e Maxime (Kyle Allen). Reilly está menos insuportável do que em “Yellowstone”, mas Rowena é apenas a mãe em luto; Dornan vive mais uma vez a personagem atormentada, novamente transitando entre o anódino e o explosivo, sem camadas, e Ferrier é a personagem mais monótona; Cottin tem em Olga um papel bem desinteressante; e Allen se esforça, mas Maxine demora para ultrapassar o papel do interesseiro. Eventualmente, as personagens saem um pouco dessa proposta inicial, mas o roteiro não consegue enriquecer twists que já compõem a trama.
Ainda em relação ao elenco, Michelle Yeoh e Jude Hill são os maiores destaques. Yeoh tem na sra. Reynolds uma vidente de moral duvidosa que não apenas serve de mola propulsora para o plot, mas catapulta a ideia governante do longa, que é sobre as crenças pessoais. “A noite das bruxas” mostra que as pessoas acreditam no que querem acreditar e, se necessário, se convencem do ilógico. Quando tentam se esconder dos próprios fantasmas, porém, acabam fracassando. Quanto a Hill, ele já havia chamado a atenção em “Belfast”; dessa vez Leopold é uma criança diferente não pelo semblante sério ou pela preferência literária (o assustador Edgar Allan Poe em detrimento do “bobo” Charles Dickens), mas por demonstrar que seu fascínio pelo macabro é algo que o constitui, ainda que precocemente. Quanto a Branagh, sua terceira encarnação do detetive é mais cansada e indisposta quando comparada às anteriores, o que é devidamente explicado. Poirot é o mesmo em sua fixação por ovos e pelo ceticismo inabalável (agora praticamente uma de suas bandeiras), mas há algo que o atormenta e que demora para ser explicado.
O erro de Branagh na direção é, primeiro, tornar o filme repetitivo, principalmente em relação à fragilidade do protagonista. Mesmo que algumas cenas de interrogatório sejam boas (como a dos irmãos, em montagem paralela), o movimento pendular do plot (entre avanços narrativos e um tremor confidencial de Poirot) quase se torna entediante. A estética é um tema à parte; Branagh flerta com o terror, porém de maneira tímida e pouco habilidosa. Existem acertos: o sobre-enquadramento do filme passado para as crianças, apavoradas, interrompido por um puxão que se assemelha à figura de um fantasma; a caracterização visual misteriosa da vidente; a movimentação da câmera em cento e oitenta graus na perseguição de Poirot à menina; o close com pouca profundidade de campo acompanhando Poirot se deslocando; a iluminação irregular das velas; o som ambíguo no Palazzo (é das crianças reais ou dos espíritos?) etc. Entretanto, os jump scares são ineficientes; a câmera na mão, muito mal utilizada (rápida demais e sempre com pouca visibilidade). Faltou ao cineasta realmente fazer um whodunit de terror, incorporando sem inibição as características estéticas do segundo gênero à narrativa do primeiro.
A sensação é de não cumprimento do potencial de “A noite das bruxas”. Branagh perde a oportunidade de aterrorizar o público enquanto Green deixa de dar complexidade às personagens (o que denota dificuldade em traduzir a literatura para a linguagem cinematográfica). O que é realmente bom é o plot. Isso, contudo, é mérito de Agatha Christie, não dos envolvidos com a adaptação de seu livro.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.