“A MULHER NA JANELA” – Utopia e precipício
“Eu vejo gente morta”: poucos plot twists são tão incríveis quanto o de “O sexto sentido”. Com um voyeurismo à “Janela indiscreta” e uma desconfiada profissional de saúde mental à “Quando fala o coração”, A MULHER NA JANELA mira ainda mais longe. Sem um roteiro sólido e uma direção consistente, porém, o objetivo não passa de uma utopia diante do que é apresentado.
Anna mora sozinha e passa seus dias assistindo a filmes antigos e observando a vizinhança pela janela. Com agorafobia, ela nunca sai de casa e encontra somente duas pessoas: seu psiquiatra e David, o inquilino que mora em seu sótão. Quando a família Russell se muda para o prédio da frente, Anna suspeita que o homem maltrata a esposa e o filho, o que faz com que ela preste ainda mais atenção no que acontece na casa.
Os envolvidos na produção são profissionais com algum renome. Tracy Letts, que adaptou o livro de A. J. Finn para o roteiro do longa, é o mesmo responsável pelo script de “Álbum de família” (tanto da peça quanto do filme). O diretor Joe Wright é o responsável por “Orgulho & preconceito” e “Desejo e reparação”, além do decepcionante “O destino de uma nação”. A trilha musical é de Danny Elfman e o elenco do filme é gabaritadíssimo. O que pode ter dado errado?
“A mulher na janela” comprova que bons profissionais não fazem um bom filme se não executarem, nas suas respectivas funções, um bom trabalho. No roteiro, as personagens não são bem desenvolvidas, mesmo considerando que o ponto de vista da protagonista acaba reduzindo a atuação das demais. Gary Oldman repete a parceria com o diretor, mas aqui com uma dose considerável de exagero; Julianne Moore e Brian Tyree Henry atuam de maneira genérica; Jennifer Jason Leigh e Anthony Mackie têm a sorte de não aparecer o suficiente para serem avaliados. Amy Adams se desdobra no papel de Anna, mas é ofuscada por tudo o que a cerca – que é muito ruim.
O texto associa voyeurismo com agorafobia, uma perspectiva nada saudável que torna Anna ambígua. Sua interação com David (Wyatt Russell, sem destaque) deixa claro tratar-se ele de personagem meramente instrumental, sem arco narrativo próprio, apesar de ser uma das que mais aparece em tela. Fred Hechinger teria em Ethan um papel que daria a Anna uma segunda camada, relativa à sua profissão e seu intento de proteger pessoas vulneráveis (crianças, em especial), contudo os desdobramentos narrativos o colocam em um clichê unidimensional. Insatisfeito, o roteiro tem ainda um final falso e um plot twist pouco verossímil. Considerando a carta branca que dá a si mesmo (referente à adoção da perspectiva exclusiva de Anna, cujo ponto de vista é parcial e constantemente questionável), é vergonhoso um trabalho textual equivocado em tal medida.
Não que fosse necessário (dado o seu currículo), mas o diretor mostra o domínio mínimo da técnica – isto é, em grau suficiente para fazer de “A mulher na janela” uma obra decente. As referências do filme, bastante pautadas em Hitchcock, ora expressa (James Stewart nos minutos iniciais, Ingrid Bergman adiante), ora indiretamente (câmera subjetiva movimentando a visão na janela, bastante parecida ao trabalho de “Janela indiscreta”). Não há parâmetro melhor, contudo a direção padece de dois problemas gravíssimos: falta de originalidade e artificialidade flagrante. No primeiro caso, apresentam-se os mesmos erros dos suspenses de baixo nível, como o deslize para um gore (que não combina com a atmosfera mostrada até então) e uma consequente trilha musical de terror B.
A artificialidade do longa é quase um capítulo à parte. Quando Anna e Jane conversam sozinhas na casa da primeira, parece que são amigas há décadas, trocando confidências. Apesar de uma primeira aparição crível, Ethan se retrai para uma infantilidade que gera desconfianças no público (na verdade, a idade do garoto já é um indicativo de alguns dos futuros acontecimentos; seria melhor um ator mais novo). Na cena em que Anna precisa desesperadamente de um telefone, sua acessibilidade reduzida ao objeto causa uma tensão tão nula que beira o cômico. Em determinado plot point, o diretor reúne as personagens (estranhamente, diga-se de passagem, em termos contextuais e cenográficos) para dar à protagonista um ultimato: a falta de sentido abraça o surreal, mas no pior sentido possível.
“A mulher na janela” quer tirar o fôlego do espectador, o que consegue fazer, no máximo, pela sua falta de qualidade. O repetitivo design de produção (que conhece apenas tons azulados e de salmão) e algumas obviedades (por que as conversas com Ed são sempre em voice over?) são apenas alguns dos elementos inexitosos do filme – especialmente em relação ao que ele quer ser. Mirar alto e acertar baixo não é incomum, todavia a discrepância aqui é um verdadeiro precipício.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.