“A MENINA SILENCIOSA” – Uma câmera silenciosa
Relacionamentos abusivos, segredos, perdas e descoberta do afeto. Tais elementos poderiam fazer parte de um melodrama típico e A MENINA SILENCIOSA até dialoga com as características do gênero. Porém, o filme irlandês não tem atuações e conflitos intensificados a partir da demonstração exacerbada de emoções, como seria de se esperar de uma narrativa melodramática. O grande mérito é dar à obra o modo de ser de sua protagonista, ao mesmo tempo silenciosa e expressiva nos detalhes.
Quem dá o título ao filme é Cáit, uma menina de nove anos que se sente solitária em sua grande família. Em casa, as condições financeiras não são boas e se tornam ainda mais delicadas quando sua mãe está prestes a ter outro bebê. Por isso, a jovem é enviada para passar o verão com parentes distantes, o casal de meia idade Seán e Eibhlín. Apesar de nunca os ter visto antes, Cáit logo se sente acolhida e cuidada com o carinho que nunca recebeu. Ainda assim, esta residência amorosa pode conter um segredo.
Os silêncios podem estar presentes na pouca expressão vocal da menina e também nas poucas informações que o público recebe da dinâmica familiar dela. Cada cena é bastante expressiva para que, sem tantas linhas de diálogo, seja possível sentir o peso da melancolia em torno da protagonista. A mãe se esquece de preparar o lanche para as quatro filhas levarem para a escola; Cáit não tem amigos e, quando se envolve em uma situação embaraçosa, não tem apoio de uma das irmãs; e o pai a deixa com os familiares não se lembrando de entregar a mala da filha. Então, o ambiente familiar é marcado pela negligência materna, pelo desinteresse fraternal e pela frieza emocional paterna. Ela é silenciosa não apenas por falar pouco, mas também para demonstrar emoções, já que não encontra exemplo nos adultos com quem convive (perguntado como foi uma viagem de carro, o pai apenas consegue responder que foi como deveria ser).
As diferenças emocionais na moradia temporária não precisam ser apresentadas de forma estridente, afinal muito é comunicado sem chamar atenção. Em pouco tempo, Cáit cria laços fortes com Eibhlín sem que seja necessário um diálogo que exponha essa aproximação. As situações do dia a dia criam o afeto e a intimidade entre ambas, como os momentos em que a mulher cuida da menina, dando banho e escovando o cabelo, ou ensina os afazeres domésticos. Este vínculo surge e se fortalece à medida que a protagonista possui, de fato, uma figura materna que seja atenciosa e cuidadosa. A relação com Seán não é tão imediata, pois o homem parece ignorar a presença da recém-chegada por não saber como agir. No entanto, os dias se sucedem e a aproximação física e sentimental também ocorre através de eventos singelos da rotina na fazenda. A necessidade de ir com ele para o trabalho é seguida de uma bronca, logo depois de um agrado; a reprimenda quanto às roupas usadas pela jovem se converte em mais um agrado para seus desejos infantis.
Como a narrativa segue o ponto de vista de Cáit, a encenação é igualmente movida pelo princípio de silêncios expressivos. O diretor Colm Bairéad distingue as sensações de cada uma das moradias a partir das escolhas da decupagem. Enquanto está na companhia de sua família, as composições visuais são frias, estáticas e rigorosas, adotando movimentos de câmera muito sutis e enquadramentos distanciados que se prolongam por um tempo considerável. A partir do instante em que convive com o casal de senhores, as composições ganham vida e a câmera enquadra as sequências com mais vigor do que antes, embora não sejam construções apelativas que chamem atenção para si. As aproximações com Eibhlín e Seán são encenadas através de montagens paralelas que encadeiam a passagem de tempo, sendo interligadas por uma canção ou pela contagem do número de vezes em que Eibhlín escova o cabelo da menina. O recurso pode parecer simples, mas a discrição (o uso “silencioso” é eficiente.
Cáit desfruta de diferenças até na caracterização dos espaços por onde passa. Nas duas porções da narrativa, apesar de planos gerais serem utilizados, os efeitos são opostos. Na casa de sua família, muitas cenas são internas e com uma iluminação escurecida, já aquelas que são externas não valorizam a natureza. Na fazenda para onde ela vai, tudo ganha mais cor, desde as sequências passadas dentro da residência até aquelas nos ambientes ao redor. Essas distinções se tornam nítidas quando Colm Bairéad cria passagens líricas com elementos naturais mais ou menos integrados aos fatos da cena, como a protagonista contemplando a flora local, ajudando a recolher água no poço ou correndo com o vento no rosto e as árvores à sua volta. As mudanças de resultados para os planos gerais impactam nos closes ou nos planos mais fechados feitos para destacar as transformações sutis da protagonista, transmitidas pelas expressões comedidas e expressivas de Catherine Clinch.
Em dado instante, Eibhlín comenta que não haveria segredos naquela casa porque apenas se esconde algo de que se sente vergonha. Porém, uma quebra acontece no universo aparentemente perfeito no qual estava Cáit. Não se trata de um segredo na acepção plena da palavra, pois era algo desconhecido apenas pela menina, nem algo que poderia provocar vergonha. A informação até então desconhecida pelos espectadores tem relação com uma perda precoce sofrida pelo casal, capaz de ressignificar a rápida aproximação entre Eibhlín e Cáit e o processo mais longo ocorrido com Seán. A revelação do segredo sugere, novamente a partir dos silêncios expressivos, o que o evento passado pode ter gerado para os dois personagens. Carrie Crowley e Andrew Bennnett traduzem a ideia central da produção através de suas atuações que dizem muito nas expressões faciais desoladas e nos olhares perdidos. E em uma conversa repleta de aspectos implícitos sobre um passado dolorosa, Seán aprova o fato de Cáit não falar tanto porque assim se evita falar algo que não deveria.
“A menina silenciosa” pode até começar com uma protagonista que não se expressa porque carece de afeto, experiências sensíveis e suporte de uma família organizada. É por isso que a pergunta ‘como está sua mãe?’ na chegada à nova casa é respondida lembrando o dia em que ganhou um sorteio e pode comprar geleia e não sobre o estado emocional dela. Com o passar do tempo, a menina pode vivenciar situações diferentes que a fazem se transformar paulatinamente para alguém que demonstra mais o que sente. Após essas transformações, o retorno para casa pode ser incômodo ao reencontrar a mãe desnorteada por suas obrigações, as irmãs despreocupadas com Cáit e o pai truculento no trato social. Levando em conta, então, o que se viveu e o que ainda pode se viver, a protagonista e a câmera podem deixar o silêncio de lado para expressar diretamente suas emoções.
Um resultado de todos os filmes que já viu.