“A MÃO DE DEUS” – A cereja do bolo
Era um jogo de quartas de final da Copa do Mundo de 1986 quando, aos seis minutos do segundo tempo, Diego Maradona iniciou uma belíssima jogada que deu origem a um gol que fez História no futebol. O lance chamou a atenção porque Maradona, de 1,65m de altura, ganhou uma bola alta do goleiro inglês Peter Shilton, de 1,83m. Seu trunfo: sua mão. O gol foi irregular, mas foi validado pelo árbitro, o que acabou sendo fundamental para uma partida que ainda estava com placar fechado e se encerrou com vitória argentina por 2×1. É nesse contexto que começa a ideia de A MÃO DE DEUS.
O filme não é sobre Maradona, tampouco sobre futebol, mas sobre o jovem Fabietto Schisa. Na Nápoles dos anos 1980, Fabietto divide-se entre uma paixão platônica pela cunhada de sua mãe e a (ainda mais forte) torcida pela chegada do jogador argentino em seu time, o Napoli. Enquanto ele amadurece, cresce a sua vontade de se tornar diretor de cinema, que não é abalada, mas fortalecida, por uma tragédia familiar.
Escrito e dirigido por Paolo Sorrentino, não é difícil perceber que se trata de um filme autobiográfico. Fabietto (Fabie, para a família) é uma versão jovem de Paolo, retratado como alguém sem amigos (basta ver seu aniversário) e muito apegado aos parentes. Com sua mãe, Maria (Teresa Saponangelo), divide brincadeiras até não mais caber no armário para se esconder; com o pai, Saverio (Toni Servillo, fiel parceiro da filmografia de Sorrentino), conversa sobre os mais variados assuntos (inclusive sua futura perda da virgindade). Marchino (Marlon Joubert), seu irmão mais velho, compartilha com Fabie a atração por Patrizia, porém o primeiro assume uma posição paternal perante o segundo, como ao afastá-lo de onde assistia a uma briga dos pais ou ao acudi-lo em um ataque epiléptico.
Mais tarde, Fabie faz amizade com Arma (Biagio Manna), que representa a diversão descompromissada (quiçá em prejuízo de eventuais compromissos) e com Capuano (Ciro Capano), que dele se torna mentor. Trata-se do cineasta Antonio Capuano, com quem o protagonista trava diálogos interessantíssimos. Ainda mais importante é a relação de Fabie com Patrizia (Luísa Ranieri), a esposa de seu tio, por quem ele nutre um encanto típico dos hormônios juvenis. O rapaz olha para ela absolutamente hipnotizado, o que abrilhanta ainda mais a ótima atuação de Filippo Scotti. É verdade que Maradona no Napoli é melhor que ter relações sexuais (segundo imagina ele) com Patrizia, mas o carinho entre os dois é palpável (inclusive quando ela é marginalizada pela família), o que a justifica na posição de musa que ele a coloca.
Há um certo humor em algumas passagens (como quando Patrizia comenta o quanto Fabie cresceu, ou ainda em relação à personagem Daniela), porém o texto não se furta da necessária acidez de uma crítica social. O moralismo surge nas primeiras cenas, quando Franco (Massimiliano Gallo) censura Patrizia, mas não tarda para que esse moralismo seja retratado como uma hipocrisia. O padre usa alegados milagres como pretexto para atos libidinosos; Saverio se despede carinhosamente de Maria, mas ele não é o marido ideal; um primo tem um trabalho relevante como inspetor, porém sua conduta é corrupta; a apresentação do noivo de uma cunhada é regada a piadas maldosas sobre ele. Exceção a essa hipocrisia é a Baronesa Focale (Betty Pedrazzi), que declara não gostar de romance e assume uma “missão” (termo usado por ela mesma) coerente com sua visão de mundo.
A esplendorosa fotografia do longa valoriza os cenários italianos desde os primeiros minutos, ainda durante os créditos. A cor branca surge no design de produção para representar a inocência de Patrizia (seu vestido e seu quarto), ao passo que o vermelho aparece para introduzir a sexualidade latente (como no corredor da casa da Baronesa), o que é típico da filmografia de Sorrentino. A época é indicada por fatores periféricos textuais (a menção ao Papa João Paulo II, as citações a Fellini e a “Era uma vez na América”), mas também imagéticos (o cós alto dos jeans azul claro). Dentre outras, essas são circunstâncias que confirmam o ótimo trabalho do cineasta.
A escolha do título é a “cereja do bolo” relativa à sagacidade do filme. A tragédia vivida por Fabie permite a ressignificação da expressão “mão de Deus”: ela é conhecida por ter sido citada por Maradona para explicar ter alcançado a bola antes do goleiro em 1986, contudo na vida do protagonista há uma mescla entre essa expressão, o idolatrado jogador e o triste evento. Não se trata do melhor filme de Sorrentino, mas o mais pessoal e, possivelmente, para ele, o mais libertador.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.