“A MALDIÇÃO DO QUEEN MARY” – Comédia não assumida e negada
De tempos em tempos, algumas críticas utilizam trocadilhos fáceis, sobretudo em análises negativas. No caso dos filmes que se passam em navios, é possível encontrar textos que falem em “naufragar nas ideias” ou “não embarcar na proposta”. Nas primeiras vezes em que essas construções foram usadas, parecia ser algo espirituoso ou até divertido. Nas repetições, tornaram-se muletas que revelam a pobreza retórica do escritor. A MALDIÇÃO DO QUEEN MARY é um desafio para os críticos que não querem usar tais trocadilhos, pois parece pedir a todo instante um comentário assim.
A bordo do navio Queen Mary, estão Anne, Lukas e Patrick. O menino de oito anos lê e coleciona tudo relacionado a histórias de fantasmas. Sabendo do gosto do filho, sua mãe, acompanhado pelo namorado, pretende escrever um livro sobre a embarcação do ponto de vista de uma criança. Enquanto caminham pelos corredores e tentam convencer o capitão Bittner de que o projeto pode ser vantajoso para o navio tornado uma espécie de atração para visitantes, estranhos eventos acontecem. Os três personagens centrais parecem estar conectados ao passado sangrento do local.
Não é nenhum mistério que o filme depende da montagem para existir. O paralelismo entre o presente e o Halloween de 1938 é o elemento que garantiria a persistência do sobrenatural na atualidade. Porém, as transições de uma época para outra não poderiam ser mais arbitrárias, tanto em termos dramatúrgicos quanto estéticos. As famílias Ratch (no passado) e Calder (no presente) não têm qualquer vínculo aparente nem as assombrações sugeridas pelo título parecem marcar presença eterna no navio. A maior proximidade entre os dois arcos temporais é o flerte com a comédia nas escolhas do diretor Gary Shore, algo que ele mesmo não explora conscientemente. A maneira como se dá o relacionamento entre as duas famílias, o jantar no salão nos anos 1930, a primeira visita ao Queen Mary no presente e a sugestão da existência de fantasmas têm mais humor do que terror.
O universo estilístico criado por Gary Shore acompanha a sensação de uma comédia que não leva a sério a trama de horror sobre uma embarcação amaldiçoada. Enquanto a narrativa ainda apresenta o cenário, os personagens e as situações, o diretor estiliza muitas cenas ao utilizar recursos visuais chamativos. Na abertura, quando a câmera evidencia assassinatos brutais em 1938, a encenação se pretende espertinha e descolada ao alternar entre a ação e os créditos iniciais. Nos momentos seguintes, o cineasta prossegue com um estilo que quer ser pop, dinâmico e semelhante a um videoclipe de ritmo acelerado. Com frequência, músicas diegéticas ou extradiegéticas de tom vibrante são apresentadas durante sequências violentas, cortes rápidos são feitos para mostrar planos detalhes de objetos sendo manuseados e filtros de luz ou texturas de imagens variados se sucedem como efeitos que querem chamar muita atenção. Os excessos parecem cômicos, dando a entender que o realizador quer mostrar o que pode fazer.
Quando a narrativa recua e se preocupa em descrever as duas linhas temporais separadamente, a comédia que se insinuava é rejeitada como se fosse algo indesejável a ser evitado. A partir daí, os problemas crescem. O Queen Mary em 1938 sofre com as tentativas de Gary Shore de fazer um terror impactante. Tudo parece demasiadamente confuso, já que não há cuidado para estabelecer um conflito real para os Ratch. O que está em jogo é o desejo da menina de ser uma artista famosa? Ou a aparente possessão do patriarca por algum espírito? Não é possível afirmar nada com segurança, pois a discussão sobre a busca pela fama é desajeitada e deslocada, principalmente na cena em que ela dança com Fred Astaire; e a desestabilização do homem é feita pelo diretor sem qualquer prazer artístico, já que a mudança ocorre repentinamente sem aproveitar as características cênicas do navio e querendo gerar o choque pelo choque com as mortes encenadas.
Em paralelo, a linha temporal no presente se assemelha no esforço de rejeitar os sinais de comédia que poderiam existir. O Queen Mary da atualidade sofre com as tentativas de Gary Shore de fazer um terror dramático ou profundo ou de um estilo visual pouco contido. Em certa medida, esse arco parece evocar o que os filmes problemáticos da A24 trazem, ou seja, o horror não basta por si mesmo com seus próprios códigos, seria preciso incorporar dramas cerebrais e metafóricos para se justificar. Logo, a iluminação se resume ao clichê das cores frias e da escuridão que mais oculta a cena do que propõe algo concreto. Da mesma forma, conflitos dramáticos são inseridos sem refinamento: o desaparecimento de Lukas, atritos emocionais entre Anne e Patrick e o trauma decorrente de um fato chocante para Anne. Além disso, o capitão Bittner ainda aparece para ser o sujeito misterioso que guarda segredos obscuros, mas o filme não sabe o que fazer com ele.
Apesar de não se assumir como comédia e até negar qualquer flerte com o gênero, “A maldição de Queen Mary” ainda gera um humor involuntário. Não são risadas genuínas de quem busca por tal reação dos espectadores, mas respostas inesperadas diante da confusão narrativa e estilística no terceiro ato quando passado e presente novamente se entrelaçam. O filme tenta muitos caminhos diferentes sem se decidir por nenhum deles, algo típico de um trabalho que mal sabe o que quer. A narrativa coloca mais de uma reviravolta, insere às pressas uma explicação para o sobrenatural em torno de David Ratch, tenta enfim fazer o navio parecer amaldiçoado com alguns fantasmas, apela para transições estilizadas entre as duas épocas, recorre a imagens supostamente chocantes e opta por um desfecho em aberto que quer ser inteligente, mas se torna confuso. Sendo assim, a obra mira em “Navio fantasma” e “Triângulo do medo“, duas produções de terror eficientes que podem ser lembradas durante a sessão, e acerta em “Calmaria“, outro trabalho desorganizado e cômico sem ser esta sua intenção.
Um resultado de todos os filmes que já viu.