“A MALDIÇÃO DA RESIDÊNCIA HILL” – Metáforas do terror
O terror é um dos gêneros cinematográficos que mais permitem aos realizadores discutir temas universais através de metáforas. Momentos assustadores, portanto, não precisam se limitar apenas ao medo em si e podem dizer muito sobre as apreensões humanas. Tais qualidades transbordam na brilhante narrativa de A MALDIÇÃO DA RESIDÊNCIA HILL, adaptação em formato de série da obra literária de Shirley Jackson.
O enredo se passa em duas linhas cronológicas distintas e no vaivém entre elas: no passado narrativo, os sete membros da família Crain (o casal Hugh e Olivia e os filhos Steven, Shirley, Theodora, Luke e Eleanor) se mudam para a grandiosa residência Hill durante as férias de verão para reformá-la e depois vendê-la; durante o período, são assombrados por eventos sobrenaturais. Já no presente narrativo, esses personagens envelhecidos tentam seguir suas vidas, enquanto lidam com uma tragédia sofrida e com o reaparecimento de fatos inexplicáveis. Não há nenhuma dificuldade em identificar qual linha cronológica está sendo vista nem as transições entre elas, graças à paleta de cores e aos raccords temáticos, sonoros e de movimentos feitos precisamente.
Inicialmente, pode haver a sensação de que se trata de simples repetição do subgênero casa mal-assombrada com todas as suas convenções (pesadelos, sons estranhos à noite, cômodos misteriosos e fantasmas). A série é assim estruturada, porém trabalha as convenções de modo inteligente e fora dos padrões. A direção de todos os episódios por Mike Flanagan certamente é a razão por trás da administração eficiente dos clichês, evitando sustos antecipados ou apelativos: os movimentos de câmera são sutis e fluidos para passear pela casa, enquadrar seus cantos e aproveitar as potencialidades do fora de campo; as cenas assustadoras, no geral, não são jump scares clássicos porque usam sons diegéticos, dispensam a trilha sonora e exploram aparições rápidas e repentinas de algo aterrorizante (os poucos jump scares sempre funcionam porque são inseridos pontualmente); e planos estáticos dos corredores ou dos cômodos da residência Hill reforçam o design lúgubre e amedrontador do cenário.
Entretanto, a série ultrapassa o subgênero no qual se filia e relaciona o terror ao drama. As sequências de de medo e mistério construídas em torno de algum fantasma ou outra paranormalidade simbolizam os piores temores, conflitos e traumas dos personagens. Hugh é assustado por uma figura de cabelos longos, que encobrem seu rosto, mandíbulas cerradas e de um grito angustiante (algo que evoca a perda que sofreu);
Steven é atormentado pela mesma criatura, dessa vez, representando o afastamento que teve de sua família; Olivia é perseguida por cadáveres do que seriam seus filhos mortos (em alusão ao instinto materno de proteção); Shirley é assustada por sua dificuldade em lidar com a morte (sejam familiares, sejam filhotes de gato que tentou cuidar).
Utilizar, então, o terror para dar vazão aos conflitos dramáticos dos personagens permite que a série possa desenvolvê-los em muitas camadas. Cada episódio segue o ponto de vista de um membro da família e apresenta suas múltiplas nuances, todas elas capazes de gerar empatia junto ao público e a exibição de temas universais: o pai Hugh cobra de si a capacidade de consertar qualquer problema; o filho mais velho Steven tem a contradição de escrever histórias sobrenaturais (e lucrar com suas vendas), mesmo não acreditando em nada dessa natureza; Theodora tem habilidades incomuns e uma dificuldade de demonstrar sentimentos; e os gêmeos Luke e Eleanor têm um curioso vínculo emocional, que os permitem sentir o vício em drogas do irmão e os traumas ligados ao sobrenatural da irmã.
É verdade que as qualidades narrativas e dramáticas da obra podem não estar explicitadas desde o início, já que os dois primeiros episódios são um pouco mais lentos e destinados à imersão gradual do público em sua atmosfera. À medida que se compreende o estilo da série e sua forma de contar história, os episódios sobem de qualidade e atingem o ápice tanto no sexto quanto no nono. Os dois são exemplos sólidos do apuro estético, da construção eficiente do terror e do desenvolvimento do drama (o sexto utiliza alguns longos planos sequência para trabalhar cuidadosamente a tensão e as relações familiares; já o nono fornece informações importantes sobre a dinâmica da residência, enquanto desenvolve a personagem Olivia através de seus medos explícitos e metafóricos). Em ambos, é possível perceber como Mike Flanagan constrói o medo pelo efeito surpresa e por seus impactos no íntimo de cada personagem.
“A maldição da residência Hill” é mais um exemplar recente da bela safra do terror na sétima arte. Aproveitando-se da estrutura episódica de uma série de dez capítulos, a história pode ser trabalhada com esmero, sem pressa e reunindo diversos aspectos cinematográficos para contar a trajetória de uma família marcada pela morte, pelo luto e pelos traumas. O gênero em questão transborda em direção ao drama e comenta traços da personalidade humana em seus mínimos detalhes através da direção, do roteiro, da montagem e das atuações. O simbologia por trás do fantasma não fica restrita ao medo em si mesmo, afinal, como diz o personagem Hugh, “fantasmas são o desejo de continuarmos próximos de quem já se foi“. E assim o terror encontra a metáfora, bem como os dramas mais humanos.
Um resultado de todos os filmes que já viu.