“A LUZ DO FIM DO MUNDO” – Distopia no seio familiar
A LUZ DO FIM DO MUNDO remete a “Filhos da esperança” e “A estrada”. Os três filmes são distopias que imaginam um mundo em que o crescimento populacional é prejudicado e a luta pela sobrevivência de pai e filho se torna pulsante. A produção dirigida, escrita e protagonizada por Casey Affleck propõe uma visão distópica atrelada ao realismo e estabelecida dentro de uma composição estética coesa e bem articulada, porém deficiente em partes do roteiro e do desenvolvimento dos personagens.
Na realidade pós-apocalíptica criada pela narrativa, quase toda a população feminina foi vitimada por uma misteriosa praga. Nesse cenário, Rag é a única menina sobrevivente após dez anos de pandemia, que tirou a vida de todas as mulheres, inclusive de sua mãe. Diante do caos reinante na sociedade, o pai retira sua filha da vida social comum para se refugir em uma isolada floresta onde poderiam se proteger e lutar diariamente pela sobrevivência.
Diferentemente de outras distopias já realizadas, o filme não se preocupa em esmiuçar as causas e os princípios daquele universo. O mínimo é explicado apenas para situar como estava o ambiente e os personagens às vésperas da devastação, através de jornais antigos inseridos nas cenas ou de flashbacks com a esposa do protagonista. A escolha por deixar as explicações vagas aumenta o mistério, evita o excesso de exposição e consegue construir os perigos do mundo com a menção dos riscos que podem surgir inesperadamente de qualquer homem solitário e violento circulando por todo espaço (a cena em que pai e Rag conversam sobre ter fé em homens desconhecidos é simbólica do quão ameaçador pode ser um universo onde cada novo indivíduo carrega um risco em potencial).
Desse modo, o aspecto fantástico do plot é o que menos importa porque as atenções se voltam para a relação entre pai e filha. A distopia é pano de fundo para uma dinâmica familiar conflituosa e para problemas de comunicação entre as gerações que se fundamentam e se desenvolvem a partir de elementos dramáticos expressivos. Por exemplo, as sequências envolvendo a narração de histórias para dormir são utilizadas como metáforas para indicar a ausência de vínculos emocionais e a capacidade de criar conexões como atos de amor; e a cena em que pai e Rag conversam sobre puberdade é concebida para revelar as fracassadas tentativas de aproximação do homem por esbarrar na forma fria e mecânica como tenta explicar algo íntimo para uma menina.
Movendo a essência da produção, estão os diálogos muito presentes que convencem pela naturalidade com que retratam as interações entre os personagens. Eles são tão expressivos que naturalizam uma conversa complexa, como os significados de moral e ética, e ajudam a construir os personagens com duas belas atuações de Casey Affleck e Anna Pniowsky: o ator transmite a dificuldade de o pai se conectar emocionalmente à filha, apesar do seu amor genuíno, e a inquietação constante de quem sempre está atento aos riscos que correm; e a atriz demonstra como a menina reprime quem ela é, aparentando ter outra identidade por segurança. Por outro lado, alguns diálogos, em certa medida, falham na clara apresentação das transformações passadas pelo pai e por Rag e comprometem os rumos tomados pelo arco de conflito familiar.
O afastamento do subgênero convencional também ocorre por conta do ritmo lento traduzido nas opções rítmicas e estilísticas de Casey Affleck. O diretor constrói planos longos e movimenta muito discretamente a câmera, que estabelecem uma rotina comum e nada glamourizada capaz de gerar situações perigosas resultantes das adversidades de vidas clandestinas. Além disso, compõe uma identidade visual própria através da fotografia de luz natural – sombras do interior da barraca à noite, raios solares dos ambientes a céu aberto e a iluminação típica de ambientes sob baixíssimas temperaturas -, que criam uma ambientação realista para uma distopia não muito distante da realidade comum.
Casey Affleck também define as variações do tom da narrativa. A morosidade inicial aborda a rotina de esconderijos e fugas, quando uma ameaça ronda a menina, e de luta pela sobrevivência com poucos recursos – um ritmo lento que afeta a jornada de conhecimento recíproco entre pai e filha por conter significativamente a energia responsável pelos conflitos de seus arcos. Já a conclusão definida pelo terceiro ato manipula a tensão ao filmar os incidentes violentos derradeiros, filmando com um realismo que imprime grande apreensão e temor em relação ao futuro dos dois personagens e estabelece uma coreografia de luta atrapalhada e nada romantizada.
Considerando-se a unidade dramática criada pelo filme, parte de seus elementos são ricamente explorados e outros pecam pelo minimalismo acentuado. O conflito inicial entre pai e filha é claramente estabelecido, assim como o comovente desfecho que impacta os espectadores, mas o desenvolvimento da narrativa até alcançar a conclusão se desgasta ligeiramente em razão dos diálogos insuficientes para a evolução dos personagens. Ainda assim, Casey Affleck mostra um olhar interessante para uma construção visual esteticamente poderosa e dramaticamente eficiente. Uma conjunção de elementos que, ao menos, torna “A luz do fim do mundo” uma estreia promissora de Casey Affleck.
Um resultado de todos os filmes que já viu.