“A HISTÓRIA DA MINHA MULHER” – Natureza indomável
O olhar externo é insuficiente na definição da natureza. Por mais intensa que uma conexão possa ser, são incontáveis as barreiras entre duas personalidades, dificultando a confluência idealizada em algumas relações humanas. Não é de hoje que o audiovisual se provou uma ótima plataforma para o desenvolvimento dessas ambiguidades. Ciente da própria superficialidade de suas imagens, ele é capaz de ilustrar esse descompasso entre a realidade interna e a suposição, trazendo interessantes reflexos da natureza de nossa espécie. Esse é o caso de A HISTÓRIA DA MINHA MULHER, curiosa forma de se retratar a relação entre o homem, a natureza, e os seus semelhantes.
Em uma certa noite, um renomado capitão da marinha holandesa resolve fazer uma aposta inusitada com seus amigos: se casar com a primeira mulher a aparecer no café onde estavam. O cumprimento da brincadeira leva ao casamento de Jacob e Lizzy, uma relação superficial. Com o passar dos anos, entretanto, os laços entre os dois se aprofundam, trazendo um turbilhão de sentimentos e o nascimento de um possível jogo de obsessão e dependência.
Dirigido pela húngara Ildikó Enyedi, chama a atenção a maneira como o longa utiliza o espaço, manifestando o estado psicológico de seu protagonista através de seus arredores. A exclusão da trama, em sua maioria, acima do mar, espelha muito bem a vivência turbulenta atravessada pelas personagens, estranhas perante umas as outras enquanto as suas interações se transformam em algo mais intrínseco. Mais do que uma mera representação estética, tais escolhas exploram o ímpeto humano pelo controle do desconhecido, que perambula em tela entre as suas formas mais lúdicas – ainda que sejam fenômenos naturais – e carnais.
Quem também agrega a esse fator indecifrável é a múltipla Léa Seydoux, cuja variabilidade dramática converte Lizzy em um verdadeiro mistério. Escolhida ao acaso para a vida que se sucedeu, ela tenta tomar algumas das rédeas que nunca estiveram ao seu alcance. Para isso, ela alterna a aceitação da vida projetada para si, e a sedução controladora que impõe sobre Jacob. Isso transfere a sua personagem para um campo cênico que reconhece a si mesmo.
Ela se transfigura assim em um verdadeiro espectro, uma presença indefinida na vida do capitão e que reforça a incapacidade do mesmo de controlar o que se desenrola diante dos seus olhos. A personagem de Gijs Naber prefere assim a exatidão do convés e das velas de madeira, disfarces para a ausência de uma maior concretude em sua vida.
Ainda que a fluidez das águas agitadas bem evidencie a crescente conflituosa que guia a obra, é necessário atentar igualmente para os momento de inflexão. As passagens do casal por cidades europeias e demais deleites luxuosos são sempre passageiras. Mesmo que utilizem de uma produção refinada, a direção jamais deixa de denunciar o deslocamento em relação ao todo. Há pouco que ali escape à atmosfera soturna da embarcação opressora.
Não há quase nada que fuja aos planos estáticos de um navio deslocado do próprio realismo, preso entre a veracidade de suas vigas, a imensidão das ondas que se estendem para além de seus deques, e a inventividade da iluminação escura, duplamente natural e projetada, que reconhece a própria imaginação. Por mais que alguns dos conflitos estejam em um lugar do cinema mais clássico, é essa noção última que torna a obra memóravel.
Se afastando de uma exploração tradicional da índole humana, a construção de um lugar ambíguo, e que dialoga com a imensidão dos dilemas entre homem e natureza, ainda que bastante literal, faz de “A história da minha mulher” um interessante conto sobre as tentativas de controle sobre os mistérios da vida. Ainda que mais extenso do que deveria, o filme administra bem o entrave das imagens, presas entre a sua dimensão plástica, mais imediata, e as inúmeras, e incompreensíveis, ramificações que se estendem por seus significados.