“A GAROTA DINAMARQUESA” – Mensagem forte nas mãos erradas
Filmes baseados em trajetórias de indivíduos reais possuem um impacto especial junto ao público. Quando também se acrescenta uma forte mensagem de importância social para quaisquer momentos históricos, o impacto se intensifica. Esse é o caso de A GAROTA DINAMARQUESA, que enfoca o momento em que o pintor Einer Wegener questiona-se sobre seu gênero e decide realizar uma cirurgia de mudança de sexo, a primeira da história, com o apoio de sua esposa e também pintora Gerda Wegener. A narrativa, entretanto, não acompanha a força de sua história.
A direção de Tom Hooper compromete um envolvimento emocional mais eficiente com o desenvolvimento da narrativa, graças à maneira como ele a conduz. Os momentos emocionantes construídos não partem do trabalho do diretor, já que sua condução é majoritariamente fria e distante por compor sequências que se sabotam e enfraquecem qualquer efeito dramático (em determinado momento, quando Einer começa a refletir sobre seu lado feminino, nomeado Lili, Tom Hooper passa para um plano em que Gerda surge cortando uma cenoura, numa referência pobre e duvidosa do que se passava com os personagens). Além disso, o diretor, mesmo contido em seus maneirismos visuais presentes em “O discurso do rei” e “Os Miseráveis“, ainda utiliza recursos narrativos esteticamente questionáveis e sem funções dramáticas concretas: o uso recorrente de planos inclinados (o chamado plano holandês), de lentes grande angulares que deformam as laterais da imagem e de uma mise en scène que concentra os personagens nos cantos do plano.
A forma como a história é contada também a prejudica e a trava em muitas ocasiões. Por mais interessante que possa ser acompanhar a questão da pintura na Dinamarca na primeira metade do século XX e o esforço de Gerda em encontrar seu lugar nesse mundo das artes, esses pontos não correspondem à história principal e acabam por desviar o andamento da trajetória de Einer e Lili. E quando o interesse do filme se concentra no inconformismo de Einer em ter um corpo masculino e no afloramento de sua identidade feminina, alguns detalhes são tratados superficialmente, especialmente a reação e os comportamentos de outras pessoas diante das posturas e sentimentos do protagonista. Dois aspectos positivos do roteiro são as muitas abordagens problemáticas da ciência à época, tratando a questão como um caso de desequilíbrio químico ou de esquizofrenia, e o relacionamento entre Einer e Gerda.
Nesse sentido, os desempenhos de Eddie Redmayne e Alicia Vikander são o centro emocional e narrativo da obra, são suas maiores qualidades. Ambos possuem um arco dramático bem delimitado e evocativo por conta de suas interpretações: o ator constrói um Einer que, gradativamente, perde sua segurança e altivez e passa a questionar seu corpo masculino como algo desconfortável e, por vezes, como uma doença, além de construir uma Lili de gestos mais suaves e de postura tímida ainda atrás de oportunidades e de força para se expressar livremente. Redmayne, porém, falha ao utilizar em alguns momentos muletas de interpretação que soam artificiais e repetitivas, como um sorriso incompleto em seu rosto; a atriz é o grande destaque da produção, investindo numa performance que se aproxima do público pelo seu caráter naturalista e demonstra a alternância de sentimentos conflitantes, passando da vontade de não perder o marido à preocupação de ajudá-lo a se sentir bem consigo mesmo. Ela comporta-se, muitas vezes, como outra protagonista do filme.
O trabalho de recriação de época também precisa ser elogiado por sua capacidade de conseguir nos transportar para aquele período. Desde os espaços mais luxuosos dos grandes bailes e exposições de arte até as casas mais reservadas e confortáveis de poucos cômodos que priorizam as telas de pintura e outros objetos dessa atividade, o design de produção mostra-se um acerto. Em consonância com esse aspecto estilístico, os figurinos também se revelam eficientes porque transmitem os diferentes estados de espírito de Einar e Lili e ocupam um lugar destacado nas transformações atravessadas pelos personagens.
Tendo ainda uma trilha sonora não tão marcante composta por Alexandre Desplat e uma fotografia de Danny Cohen repleta de planos gerais de paisagens paradísicas (porém, sem função dramática sólida), “A garota dinamarquesa” torna-se mais importante pela ideia original que pretende fazer circular (a necessidade de respeitar diferenças de gênero e as opções de cada indivíduo) do que pelas características narrativas construídas. Talvez sob a batuta de outro diretor, teríamos um filme mais à altura do tema relevante que traz.
Um resultado de todos os filmes que já viu.