“A FREIRA 2” – Marvelização do terror
Em 2008, a fórmula Marvel teve início com “Homem de ferro“. Os anos se passaram e os códigos se consolidaram: humor constante, referências ao próprio universo e expectativas permanentes para a obra seguinte (a sensação de que o melhor ainda está por vir, mas nunca chega). Em 2019, “Vingadores: Ultimato começou a definir o desgaste de um ciclo e os filmes de super-herói não mantiveram o mesmo sucesso comercial graças, em parte, ao grande número de lançamentos. Pode ser estranho começar um texto para um filme de terror citando a Marvel. A estranheza se dissipa por causa das escolhas de A FREIRA 2, que poderia ser distante da produtora da Disney, mas curiosamente se assemelha muito.
A continuação se passa na França de 1956. A Irmã Irene tenta retomar a normalidade ao regressar de uma experiência mortal contra o demônio Valak em um convento da Romênia. A tentativa falha porque o Vaticano solicita novamente sua ajuda. Uma série de eventos sem explicação aparente está acontecendo por diferentes partes do mundo, como a morte de um padre francês coberto por fogo. Então, Irene é designada para investigar o mal demoníaco que rapidamente se espalha e chega a um internato católico de meninas.
Desde a estreia de “Invocação do mal” em 2013, a Warner Bros. investe na construção de um universo compartilhado. As missões do casal Warren já renderam três produções próprias e três “Annabelle“, “A maldição da chorona” e o primeiro “A freira“. No “Invocaverso“, o único diretor que realmente tem uma assinatura visual própria é James Wan. Os demais tentam emular seu estilo ou se subordinam às interferências dos produtores. Esse é o caso de Michael Chaves, que já havia dirigido “A maldição da chorona” e “Invocação do mal 3“. A ampliação do mundo diegético segue, então, as facilidades mais comerciais e óbvias para o gênero. Para aumentar o nível da ameaça, a trama é levada para um internato onde crianças e adolescentes estarão em perigo (inclusive, é possível inserir a clássica subtrama de bullying). E para aumentar o escopo do mistério, a história interliga várias mortes a partir da busca por uma relíquia dando à narrativa o formato da aventura da semana tal qual seu antecessor.
Como em outros filmes de universo compartilhado, os arcos dramáticos e temáticos não são alvos do maior interesse por parte dos realizadores. Sendo assim, Michael Chaves fica dividido entre trabalhar ou não uma jornada mais significativa para suas personagens. Como resultado, a narrativa fica em um lugar indefinido que prejudica eventuais discussões sugeridas e as deixam de lado. Os questionamentos da Irmã Debra sobre a própria fé por conta da maneira como chegou ao convento não passam de uma insinuação esquecida pelo roteiro, o que deixa Storm Reid sem ter o que fazer até o papel pontual de protetora no clímax do terceiro ato. Já as memórias que Irmã Irene tem da mãe parecem importantes para algum desafio pessoal de enfrentamento de traumas, contudo são desenvolvidas para gerar uma reviravolta nada impactante sobre o uso da relíquia. Consequentemente, Taissa Farmiga investe nas dores emocionais da religiosa enquanto a narrativa aponta para outros caminhos.
Seguindo a fórmula Marvel de se manter dentro de moldes estéticos já definidos, este filme repete grande parte da construção do horror feita anteriormente. A falta de criatividade ou de autonomia dos diretores para saírem dos padrões convencionais das histórias de super-heróis parece ter transbordado para o mundo do terror do casal Warren e de demônios na iconografia cristã. Michael Chaves continua preso a mesma abordagem da freira como se precisasse reproduzir as convenções estabelecidas pelo primeiro filme, não podendo variar tanto. Os jump scares são os mesmos: assustar pelo reflexo do vilão em um espelho, pela aparição sorrateira de seus dedos, pela exibição gradual de seu rosto nas sombras e pela insinuação de sua presença em detalhes do cenário. Outro problema que se nota com o passar do tempo é a banalização da freira, já que surge constantemente de forma muito visível em cena e perde o efeito assustador da surpresa ou da incerteza quanto à segurança.
É verdade que Michael Chaves constrói algumas sequências que se afastam de um padrão impositivo sem originalidade. Se, ocasionalmente, a Marvel Studios apresentou obras com identidades particulares, como “Pantera Negra” e “Capitão América: Soldado Invernal“, o “Invocaverso” conta com breves momentos de criatividade em “A freira 2“. Na abertura, a primeira morte prepara a tensão de modo cuidadoso, fazendo a chama de uma vela formar o rosto do demônio, e ainda estiliza a aparição e influência de Valak, fazendo uma sombra expressionista recobrir a silhueta de um homem); mais adiante, a cena que se passa em uma banca de jornal concilia tensão e força estética da imagem ao usar o movimento rápido das páginas de revistas para ilustrar a aparência da freira). No entanto, os dois exemplos são isolados e logo são substituídos por sequências padronizadas em que sustos são dados a partir dos clichês visuais do primeiro filme, como nas possessões de Maurice e na sequência de uma estátua coberta por um pano.
A proximidade simbólica com a Marvel vai além e surpreende pela existência de elementos alienígenas ao universo do horror. Mesmo que a conclusão do terceiro ato seja mais organizada na continuação por dividir os núcleos de diferentes personagens em perigo com eficiência, carrega vícios do antecessor. A resolução de certas situações extrapola a fantasia e busca conveniências que facilitem o preenchimento de lacunas na cena, além de insistir em um desfecho em uma área alagada que dificultaria a sobrevivência. Acima de tudo, a narrativa incorpora uma atmosfera de super-herói e enfraquece o terror ao mostrar o confronto final como um duelo entre figuras de poderes especiais. Nesse aspecto, a relíquia perde seu sentido religioso e adquire o caráter fantasioso de um artefato que libera luzes e fortalece quem a utiliza. A própria encenação sugere essas características, já que coloca a freira suspensa no ar como um vilão de histórias de heróis.
Repetir elementos visuais de produções anteriores, dispensar possibilidades mais inventivas e dar uma roupagem de super-herói ao terceiro ato não são as únicas tentativas de seguir os passos da Marvel. Se Kevin Feige comanda a Marvel Studios, James Wan cumpre o mesmo papel no “Invocaverso“, sendo também referência formal de inspiração para outros projetos. Michael Chaves tenta emular o produtor em sequências inicialmente intimistas que que seriam o ponto de partida para a deflagração do horror, mas o efeito não é atingido como fica claro nos últimos minutos da projeção. Haveria, então, um esforço nada natural de criar outro universo compartilhado assim como a DC Comics e os monstros da Universal tentaram fazer. É por isso que antes dos créditos finais, “A freira 2” reafirma seu vínculo com um universo cinematográfico maior com uma cena que praticamente expulsa o espectador do que acabou de assistir e projeta expectativas para um filme futuro. Como última impressão deixada, é uma escolha sabotadora.
Um resultado de todos os filmes que já viu.