“A FLOR DO BURITI” – A força lúdica da resistência
São muitas as maneiras de se observar a historiografia indígena do Brasil. Em sua hegemonia, os principais registros tendem a ser confeccionados pelos vencedores da história, representantes de grupos e potências cujos interesses prevalecem dentro da hierarquia internacional. Pela mistura de diferentes linhas temporais, A Flor do Buriti invoca rituais e crenças do povo krahô para advogar por sua emancipação.
Em uma determinada noite, duas crianças krahô se deparam com um boi, vagando pelo seu território. Sua presença incompreendida surge como prenúncio de uma tragédia iminente: um violento massacre que destroçou as bases da aldeia. Anos mais tarde, alternando entre diferentes épocas, o filme acompanha um grupo de indígenas inclinado a seguir as sugestões do Estado, e migrar para Brasília, e as gerações que persistem até hoje em seu território originário.
Multitemporal, a direção da brasileira Renée Nader Messora, que há 15 anos trabalha com a comunidade dos índios krahô, e do português João Salaviza se destaca pela valorização de aspectos lúdicos, ainda que ancorada por passagens históricas demarcadas de maneira mais concreta. A criação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), fundada durante a Ditadura Militar sob o pretexto de preservar os seus direitos, surge como um ponto de virada, determinando uma série de tensões inter geracionais.
Na desconstrução dessa intenção inicial, que logo se prova instrumento de extensão do poder dominante, o filme se desvencilha igualmente de sua estrutura mais lógica, e imerge em uma série de simbolismos, revelados, pouco a pouco, por procedimentos ritualísticos e a exploração de tradições através da câmera. Os planos abertos permitem ao espectador estudar esses territórios a sua própria maneira. Não existe um projeto de enclausurar aquelas personagens dentro de uma lógica utilitarista, ou mesmo clássica, daquela narrativa, ainda que o dispositivo mais documental do projeto esteja ainda em um lugar comum.
Isso cresce com o desenvolvimento de um olhar para as texturas, os espécimes de fauna e flora, especialmente aquele que dá título ao filme, representante do coração que mantém vivo a tribo krahô. É curiosa também uma relação mais específica com o desenho de luz, especialmente nas cenas noturnas.
Fogueiras e estrelas determinam o molde de fontes naturais. Existem também focos muito específicos de luz que investigam os rostos dos membros da tribo. De modo geral, a iluminação nunca cobre espaços muito extensos. Ela se restringe ao contraste entre as presenças, emolduradas pelo fogo pulsante e pela imensidão da noite, e o território deixado à suspensão. Não que a sua construção geográfica, enquanto ecossistema, seja desprezada pela produção, mas existe uma superação dessa dimensão física na maneira como esse espaço representa as condições espirituais do povo resistente.
Esse entrelaçar metafísico que distorce, inclusive, a temporalidade, gera paralelos que apontam para uma continuidade. A crueza dos assassinatos do passado se tornam pesadelos para as crianças do presente, sugerindo um estado de transe onde a defesa se ancora na memória, no registro e na tradição oral. A narração é rígida, trazendo datas, épocas e fatos concretos, mas o que a antevê se espirala ao longo da duração.
Sonhar a existência, transcender a resistência imaginária, presente na vulnerabilidade das matrizes naturais, que representam aquele ambiente e os fundamentos culturais da tribo como um todo, através do retrato, da preservação de uma memória. É esse o caminho traçado por “A flor do buriti”. Do magnético plano inicial, que invoca a atenção do espectador com um chocalho que anseia tatear os céus, ao retrato do nascimento de Jotàt (Solane Tehtikwyj Krahô), personagem chave enquanto símbolo de permanência, tudo aponta para essa ideia de continuidade.
Uma continuidade que desafia as leis sociais, desconstrói imagens de fachada e remonta à ontologia de formação e sobrevivência de um povo. Desinteressada por uma recuperação imediata, se permite, inclusive, aceitar uma outra relação com o tempo. Aquele que movimenta a lógica dos povos originários, contrária a princípios de colonização do outro, de catalogação de funcionalidades, sistematização de custos humanos em nome da extração de rendimentos. Tem-se a emancipação, como membro de uma poderosa e recente leva de filmes indígenas, de outra maneira de significar a história e o tempo e a nossa maneira de percebê-lo.