“A FILHA DO PALHAÇO” – Tá fazendo falta
A situação de um pai (ou uma mãe) ausente ou que abandona a sua filha (ou filho) já foi abordada por diversos ângulos no cinema. Geralmente, prevalece o viés dramático (uma disputa contenciosa para ganhar a guarda após o arrependimento do abandono, em “Kramer vs. Kramer”, o interesse em conhecer o misterioso genitor, em “A baleia”), mas existem filmes que dão tons humorísticos ao tema (como “Click”, em que o pai é ausente, ou o musical “Mamma mia!”, em que ele é desconhecido). A FILHA DO PALHAÇO é exemplo do primeiro grupo, com duas faltas que o impedem de se tornar marcante.
Aos 14 anos, Joana vai finalmente passar alguns dias na companhia de Renato, seu pai, um humorista que se apresenta em bares interpretando a personagem Silvanelly. Durante o período, os dois, praticamente desconhecidos um do outro, aprendem a construir o elo que durante tantos anos não tiveram.
O roteiro, escrito pelo diretor Pedro Diogenes e por Michelline Helena e Amanda Pontes, se assemelha ao de “Aftersun”, produções contemporâneas (ambas de 2022, ainda que o lançamento do longa de Diogenes seja posterior). Porém, o olhar de Diogenes para a novel presença do pai outrora ausente é mais focado para o laço que se forma do que para os fantasmas que o atormentam. Ou seja, o backstory do genitor tem função acessória, para explicar (ao menos em parte) o passado (a razão do afastamento), não tanto para justificar o presente (seu estado atual).
O filme é previsível, o que, nesse caso específico, não é um defeito, uma vez que a proposta fica óbvia desde os minutos iniciais, qual seja, de desenvolver a aproximação entre Joana e Renato. Nesse sentido, a progressão do vínculo entre os dois é muito boa: como é de se esperar, Joana é antipática a Renato, tanto pelo que ele quer fazer para ela (como uma refeição) quanto pelo que ele faz para viver (seu trabalho), porém aos poucos ela vai ganhando simpatia ao ponto de defendê-lo quando considera necessário. O sono das apresentações é substituído por um riso de admiração; com o avanço narrativo, eles se abrem um com o outro. Parte disso é consequência de Joana encontrar em Renato um pai permissivo em relação a ingestão de determinadas substâncias (das mais comuns às que talvez a maioria dos pais não permita) ou mesmo em relação à conduta da adolescente (na cena do muro de João Lucas).
O que constitui o ponto de virada para essa transformação da relação entre os dois é a cena em que Joana mexe nos objetos pessoais (principalmente as fotos antigas) de Renato, o que lhe permite reconstruir o seu passado e compreendê-lo melhor, além de gerar curiosidade a seu respeito. Existem elementos que auxiliam no aumento da proximidade entre eles, como a maquiagem – a estranheza inicial se torna um interesse comum, o que é elevado com a permissividade de Renato – ou a revelação da origem (da ideia) de Silvanelly, mas é nos diálogos reveladores (como quando ele fala sobre Diogo) que essa proximidade ganha caráter terno. De fato, há cenas que esbanjam ternura, com destaque para aquela embalada pela canção “Tô fazendo falta”, da cantora Joanna, cuja conexão com a trama é notória (o nome da cantora, o significado da música…). O uso da trilha musical, por sinal, é um dos pontos positivos do longa, assim como o modesto design de produção: apesar da sua singeleza, ele consegue transmitir bastantes informações, como a situação financeira de Renato (os DVDs “piratas”, a TV de tubo como novidade, Joana dormindo na rede…) e o choque entre gerações (ela, ligada ao celular, ele, sem uma smart TV em casa, mas com discos de vinil).
Apesar de inseguro (como na cena em que treina um discurso olhando para uma peruca), Renato é um pai carinhoso cujo afeto é crescentemente recepcionado por Joana. Quase sempre fumando e bebendo em diversas cenas, ele tem seus traumas, que, todavia, não o afundam em depressão. Demick Lopes tem uma atuação fenomenal no papel, transitando brilhantemente entre o humor expansivo de Silvanelly, uma personagem verborrágica, empolgada e de caracterização visual chamativa (maquiagem pesada, peruca, vestido, enchimentos etc.), e o drama sutil de Renato, mais calmo e introspectivo. Por outro lado – e esta é a primeira falta do filme -, ele não tem uma parceira de cena à altura. Na verdade, Sutter Lis não consegue convencer no drama que lhe é exigido no papel de Joana (basta ver na cena em que fica decepcionada com João Lucas ou na cena com o torcedor no bar), o que afeta muito o resultado final do filme. Em se tratando de uma obra dramática sobre a relação entre pai e filha, sendo ruim a atuação no papel da filha, não há como o saldo ser muito positivo.
A segunda falta do filme é algo que o diferencie dos diversos outros que versam sobre o mesmo tema. Se a atuação de Lopes alça a produção a um patamar mais elevado, a de Lis a rebaixa. Logo, na ausência de um diferencial, a sensação é de que se trata de apenas mais um drama razoável. Tocante em alguns momentos (novamente, graças a Lopes), mas que deixa o público na expectativa por algo que não ocorre (por exemplo, aumentar a participação das personagens de Jesuíta Barbosa ou de Ana Luiza Rios).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.